Já esteve preso em si, em sua casa, em seu
quarto, não se desvencilhando de seu cárcere ainda que seja o próprio
carcereiro, com todas as permissões ao alcance? Não sei se isso realmente é uma
pergunta. Talvez seja um estado. Ou condição.
Tem-se as chaves do
catre, passe livre nos corredores e nos arredores; tem-se condução,
algum dinheiro do cheque especial, e até o mínimo de saúde para se levantar e
simplesmente ir. Note que o destino é prescindível. As portas estão abertas,
gritando para que passe, mas está-se surdo e não se consegue entendê-las. Intenso
caos profundo, eu sei, mas não há movimento. Não há impulso.
Não
se sente fome, não muita, assim o isolamento é mais fácil, o que torna tudo
pior, porque favorece a permanência. Sem fome não há busca, apenas resignação
insatisfeita e perene. Os dias se sucedem como um só, eivado de horas e
minutos, vividos um por um e cada um, que não transmutam sua marcha contínua do
Mesmo — o inalterável.
Não
há algemas ou pau-de-arara. O que retém o Homem é a derrota da diversidade. E o
silêncio. Tudo reverbera na mente, sem que haja a que ou quem, remeter a voz ou
os ecos do pensamento indômito.
A razão
não é dona de si, ela apenas surge avassaladora e selvagem, impiedosa com seus
atos destrinchantes do eu, de mim, de tu, de vós. A razão é assim: sem razão, tão
somente marcial e determinante, peremptória. Sua força é ser incontestável,
pois já está lá, altiva, abrangente e precisa. Diria-se: cirúrgica.
A consciência
aprende a refutá-la, mas é consciente demais para alcançar êxito. Coordena os
argumentos da razão enfeitiçando-os de lógicas e propriedades, mas falta-lhe
autenticidade. A consciência forja, a razão demonstra. Aquela afaga, esta
morde.
O que não
significa, entretanto, que seja clara, a razão. Ela age por linhas tortas.
Tortas demais, porque a verdade não é linear. Ela tão somente é. Sempre
conhecida, quase nunca aceita — conscientizada. As pessoas preferem a crença, o
dado, o ruminado para mais fácil deglutição. Engolir não é agradável, é um
esforço muscular intenso e agudo. Pode doer. Geralmente fere. E quem cospe, por
padrão, o faz para os lados ou para trás, desviando-se do produto daquilo que não
foi capaz de ingerir. Cuspa para a frente.
Quando a razão
se faz notar, o mundo cai. Cai à sua volta com a magia da gravidade — salve
Newton. Não há como segurar, o mundo é grande demais, pesado demais, e você não
fez nada para merecê-lo. Deixe-o cair e ouça, com medo e susto, o fragor. Os
detalhes desse mundo são tão ínfimos e indecifráveis que escapam entre os
dedos, por mais que firmemos nossas mãos, pressionando os polegares aos
mindinhos para não permitir que sejam trespassados. Ainda assim, esvaem-se, os
pérfidos detalhes, pelas garras e nada compreendemos de fato, pois não retidos.
Sua consciência
vai repelir, talvez inconscientemente, a queda e as farpas, o desnudar da vida,
mas elas estarão lá — em vertigens —, delineadas pela razão que se lhe as
apresenta como melhor aprouver — a quem? Você não dá ouvidos, muito ciente do
mundo falsamente inteiriço e em pletora de sentidos desarranjados.
Para impedir o caos
nefasto da razão, a consciência organiza tudo em feitios de ordem, com papéis
a serem encenados com mediocridade, com causas e consequências que não permitem
à razão florescer, embora ela sempre esteja presente, etérea, assombrosa,
pronta para destronar as suas barreiras nos primeiros ruídos de fraqueza.
Quando isto acontece
e a gente a encontra diante de nós, a um palmo mais ou
menos, sem cheiro, vemos que ela se veste exatamente da nossa forma, uma
silhueta da qual tentávamos escapar, inutilmente. Implacável, ela o deita no chão
e sem amarras ou pressão, não lhe permite levantar, mas não o segura — é mais
forte que qualquer poder físico. Mantém as portas abertas, com sarcasmo, para
provar o seu fracasso com vigor.
O fracasso é
ostentado a cada dia. Portas abertas, chaves nas mãos. Permanência.
Conhecer,
repentinamente, tudo o que não se é e que tanto se dedicou, em cada ato
diário, para não o ser, com algum êxito temporário, entremeado de lampejos
esparsados no tempo de humanidade verdadeira, o reduz a um passageiro sem
bilhete de sua própria sem vida, com medo de o cobrador aparecer em alguma
esquina e expulsá-lo dela, seja qual for a cara que se dê, ou que se veja, a
este senhor.
Mas a razão
reposiciona tudo ao seu redor, renomeando cada uma das coisas, não
necessariamente o fortalece. Isto depende do usa das informações às quais passa
a ter acesso.
A razão
introduz o ser humano ao homem, e não se gosta do novel desconhecido.
Detesta-se. E não há divórcio, até que a morte os separe.
A saída
continua à frente do homem, escancarada, mas não é um feixe de luz, uma iluminação
santa. Está lá, como ela é. E pode-se ver tudo o que tem do outro lado, sem
ornamentos ou efeitos especiais. Este caminho que se traça além dos umbrais é
tortuoso. A porta de evasão é um limiar tênue e opostamente forte. Seria mais
prazeroso e fácil escalar ameias de castelos a transpor um portal aberto para
conviver com a razão — vê-se o outro lado de frente, enquanto a consciência
resta esmaecida de forças para reorganizar e conectar os pontos em alívio.
Vive-se a esmo.
A razão
é a verdade sem dono, uma deusa pura, sem ódio ou amor, apenas ciência. Ela
conduz o homem para onde se encontra, hoje, enquanto a consciência o atrasa. A
razão ascende forte sobre o encarcerado entre suas paredes; a consciência
remonta ligações, não permitindo que tudo se demonstre como realmente é. No
homem em que aquela é sempre mais forte que o usual, em que se mitiga em
inferior grau, exige-se, em contrapartida, o desejo de estar só de outras
pessoas — mas sempre precisando de alguém? É esta uma pergunta?
Ela se manifesta, no
homem sem consciência, como uma sombra longa na manhã,
conectada a si apenas pelos pés, mas que se aproxima mais e mais, sem rota de
fuga, com o avançar das horas, convertendo-se num amontoado disforme e breve,
que não se nota senão olhando para baixo, para dentro de si. E o meio-dia é
agora.
Não
sem luta. A consciência tenta trazê-lo de volta à mentira anestésica dos
sentidos entorpecidos, à paz interior pela idealização do exterior, furtando
pedacinhos reais do homem para que viva livre da razão.
A vida é
efêmera como pegadas à beira-mar —alguém já deve ter escrito isso e eu devo ter
lido. Que seja efêmera como a memória. De outro modo, fica claro que ela se
move para frente, e que tudo o que se passou somente existe sob os pés do
andarilho tenaz. O futuro é o passo seguinte, com a certeza de que irá marcar a
areia úmida, mas sem o vaticínio irrefutável de que o tornozelo não cederá. E a
razão impede que a consciência afaste esta dúvida quanto aos fatos do porvir, o
que gera temor de continuar caminhando, embora torne as curvas mais claras que
uma longa reta jamais poderá ser.