quinta-feira, 26 de agosto de 2021

E Assim...

 E assim... eu me vejo aqui.

Sem modelo, sem apelo. Eu simplesmente estou aqui.

Parece que foi uma queda. Quem é o responsável?

Vai ser fácil dizer que fui eu. E fui. Mas não fui. Eu apenas não sabia.

Sou responsável por minha ignorância. Uma afirmação ou um questionamento?

Sempre será uma questão.

E agora sou isso que sou, sem escolhas ou planos. Talvez minha última oportunidade de planejar algo. Para um fim digno, pois não pertenço, ainda, à geração imortal. Até que o sol se apague.

Se eu sou finito, o que eu tenho não é o bastante? Como pode não ser?

A finitude torna tudo emergencial, mas as pessoas creem no eterno para não digladiarem com seu fim, e tudo parecer adequado. Afastamos a urgência e ganhamos o agora, que um dia será o amanhã e o hoje.

O estigmatismo do presente. Eu sofro disso. Quem não? Lisonjeiramente clamam de burrice. E eu compartilho dela.

Assim, onde estou em mim mesmo? Tenho um conceito? Ou menos, tenho uma ideia?

(pausa para pensar...)

Pouco fiz, nada entendi.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Em Si - Razão e Consciência


Já esteve preso em si, em sua casa, em seu quarto, não se desvencilhando de seu cárcere ainda que seja o próprio carcereiro, com todas as permissões ao alcance? Não sei se isso realmente é uma pergunta. Talvez seja um estado. Ou condição.
Tem-se as chaves do catre, passe livre nos corredores e nos arredores; tem-se condução, algum dinheiro do cheque especial, e até o mínimo de saúde para se levantar e simplesmente ir. Note que o destino é prescindível. As portas estão abertas, gritando para que passe, mas está-se surdo e não se consegue entendê-las. Intenso caos profundo, eu sei, mas não há movimento. Não há impulso.
Não se sente fome, não muita, assim o isolamento é mais fácil, o que torna tudo pior, porque favorece a permanência. Sem fome não há busca, apenas resignação insatisfeita e perene. Os dias se sucedem como um só, eivado de horas e minutos, vividos um por um e cada um, que não transmutam sua marcha contínua do Mesmo — o inalterável.
Não há algemas ou pau-de-arara. O que retém o Homem é a derrota da diversidade. E o silêncio. Tudo reverbera na mente, sem que haja a que ou quem, remeter a voz ou os ecos do pensamento indômito.
A razão não é dona de si, ela apenas surge avassaladora e selvagem, impiedosa com seus atos destrinchantes do eu, de mim, de tu, de vós. A razão é assim: sem razão, tão somente marcial e determinante, peremptória. Sua força é ser incontestável, pois já está lá, altiva, abrangente e precisa. Diria-se: cirúrgica.
A consciência aprende a refutá-la, mas é consciente demais para alcançar êxito. Coordena os argumentos da razão enfeitiçando-os de lógicas e propriedades, mas falta-lhe autenticidade. A consciência forja, a razão demonstra. Aquela afaga, esta morde.
O que não significa, entretanto, que seja clara, a razão. Ela age por linhas tortas. Tortas demais, porque a verdade não é linear. Ela tão somente é. Sempre conhecida, quase nunca aceita — conscientizada. As pessoas preferem a crença, o dado, o ruminado para mais fácil deglutição. Engolir não é agradável, é um esforço muscular intenso e agudo. Pode doer. Geralmente fere. E quem cospe, por padrão, o faz para os lados ou para trás, desviando-se do produto daquilo que não foi capaz de ingerir. Cuspa para a frente.
Quando a razão se faz notar, o mundo cai. Cai à sua volta com a magia da gravidade — salve Newton. Não há como segurar, o mundo é grande demais, pesado demais, e você não fez nada para merecê-lo. Deixe-o cair e ouça, com medo e susto, o fragor. Os detalhes desse mundo são tão ínfimos e indecifráveis que escapam entre os dedos, por mais que firmemos nossas mãos, pressionando os polegares aos mindinhos para não permitir que sejam trespassados. Ainda assim, esvaem-se, os pérfidos detalhes, pelas garras e nada compreendemos de fato, pois não retidos.
Sua consciência vai repelir, talvez inconscientemente, a queda e as farpas, o desnudar da vida, mas elas estarão lá — em vertigens —, delineadas pela razão que se lhe as apresenta como melhor aprouver — a quem? Você não dá ouvidos, muito ciente do mundo falsamente inteiriço e em pletora de sentidos desarranjados.
Para impedir o caos nefasto da razão, a consciência organiza tudo em feitios de ordem, com papéis a serem encenados com mediocridade, com causas e consequências que não permitem à razão florescer, embora ela sempre esteja presente, etérea, assombrosa, pronta para destronar as suas barreiras nos primeiros ruídos de fraqueza.
Quando isto acontece e a gente a encontra diante de nós, a um palmo mais ou menos, sem cheiro, vemos que ela se veste exatamente da nossa forma, uma silhueta da qual tentávamos escapar, inutilmente. Implacável, ela o deita no chão e sem amarras ou pressão, não lhe permite levantar, mas não o segura — é mais forte que qualquer poder físico. Mantém as portas abertas, com sarcasmo, para provar o seu fracasso com vigor.
O fracasso é ostentado a cada dia. Portas abertas, chaves nas mãos. Permanência.
Conhecer, repentinamente, tudo o que não se é e que tanto se dedicou, em cada ato diário, para não o ser, com algum êxito temporário, entremeado de lampejos esparsados no tempo de humanidade verdadeira, o reduz a um passageiro sem bilhete de sua própria sem vida, com medo de o cobrador aparecer em alguma esquina e expulsá-lo dela, seja qual for a cara que se dê, ou que se veja, a este senhor.
Mas a razão reposiciona tudo ao seu redor, renomeando cada uma das coisas, não necessariamente o fortalece. Isto depende do usa das informações às quais passa a ter acesso.
A razão introduz o ser humano ao homem, e não se gosta do novel desconhecido. Detesta-se. E não há divórcio, até que a morte os separe.
A saída continua à frente do homem, escancarada, mas não é um feixe de luz, uma iluminação santa. Está lá, como ela é. E pode-se ver tudo o que tem do outro lado, sem ornamentos ou efeitos especiais. Este caminho que se traça além dos umbrais é tortuoso. A porta de evasão é um limiar tênue e opostamente forte. Seria mais prazeroso e fácil escalar ameias de castelos a transpor um portal aberto para conviver com a razão — vê-se o outro lado de frente, enquanto a consciência resta esmaecida de forças para reorganizar e conectar os pontos em alívio. Vive-se a esmo.
A razão é a verdade sem dono, uma deusa pura, sem ódio ou amor, apenas ciência. Ela conduz o homem para onde se encontra, hoje, enquanto a consciência o atrasa. A razão ascende forte sobre o encarcerado entre suas paredes; a consciência remonta ligações, não permitindo que tudo se demonstre como realmente é. No homem em que aquela é sempre mais forte que o usual, em que se mitiga em inferior grau, exige-se, em contrapartida, o desejo de estar só de outras pessoas — mas sempre precisando de alguém? É esta uma pergunta?
Ela se manifesta, no homem sem consciência, como uma sombra longa na manhã, conectada a si apenas pelos pés, mas que se aproxima mais e mais, sem rota de fuga, com o avançar das horas, convertendo-se num amontoado disforme e breve, que não se nota senão olhando para baixo, para dentro de si. E o meio-dia é agora.
Não sem luta. A consciência tenta trazê-lo de volta à mentira anestésica dos sentidos entorpecidos, à paz interior pela idealização do exterior, furtando pedacinhos reais do homem para que viva livre da razão.
A vida é efêmera como pegadas à beira-mar —alguém já deve ter escrito isso e eu devo ter lido. Que seja efêmera como a memória. De outro modo, fica claro que ela se move para frente, e que tudo o que se passou somente existe sob os pés do andarilho tenaz. O futuro é o passo seguinte, com a certeza de que irá marcar a areia úmida, mas sem o vaticínio irrefutável de que o tornozelo não cederá. E a razão impede que a consciência afaste esta dúvida quanto aos fatos do porvir, o que gera temor de continuar caminhando, embora torne as curvas mais claras que uma longa reta jamais poderá ser.

domingo, 13 de julho de 2014

A Esquina

Caminhava por sua via calçada absorto do mundo à sua volta, sem ideia exata se ele abandonava a realidade ou se ela o expulsava. Carros passavam freneticamente sobre o asfalto antinatural desviando por poucos centímetros daqueles que atendiam ao limite de velocidade, sempre deixando um lastro sonoro com seus agudos e mal afinados berrantes. Transeuntes graciosamente ignotos o cortavam nos dois sentidos, sem olhares, sem pensamentos, sem história, com fios acoplados às orelhas. Caminhava por sua via em busca de seu destino certo, no automatismo diário de sua peregrinação consentida, exercendo sua liberdade de ir e vir do trabalho ressentido.
Passara anos a fio por aqueles mesmos escombros a que chamavam de calçada, naquele mesmo horário que convencionaram como cedo, com aqueles mesmos seres humanos que se escondiam como pedestres, para o mesmo endereço que minimizavam como obrigação. Cumprira aquele trecho de menos de cem metros de tortos concretos infinitas vezes e, uma vez mais, aproximava-se da próxima rua.
Com a cabeça um tanto baixa, alcançando impassível o cruzamento, uma luz mais intensa pousou tepidamente em sua face. A fileira de torres elevadas ombro a ombro chegara ao fim, repentinamente, como todos os dias antes deste, e o sol insistente o encontrou. Ele desviou seu olhar morto do chão em direção àquela luz estranha que o despertava. Avistou mais que a luz, avistou uma imensurável dimensão de pessoas e que vinham ao seu encontro sem cumprimentos, e outras mais que se afastavam sem despedidas.
O fluxo de seus passos coagulou como sangue esvaído. Imóvel, permaneceu observando quem vinha e quem ia. Seguiu a linha da calçada que encontrava com a sua tornando-as uma e notou, não com a mente, mas em seu íntimo, que ela não tinha fim. Como magia, seres humanos surgiam sem razão conhecida dançando seus pés sobre ela e se aproximavam numa marcha zumbi. Olhou na direção oposta e o mesmo fenômeno ocorria no outro encontro de calçadas, com a diferença de que não havia ninguém parado por lá. Dois caminhos se uniam depois de conduzir pessoas desde o infinito, desaguando-as ali, ao mesmo tempo.
À frente, a rota que deveria seguir: mais duas intercessões de pedras portuguesas mal ajambradas, separadas dele pelo asfalto. O sinal finalmente ficara verde e todos pararam por ali como ele, mas não enxergavam o que ele finalmente era capaz. Os dois encontros de caminhos se enfrentavam. As pessoas face a face, lado a lado como os prédios atrás, não se percebiam. Olhavam as outras paradas na margem oposta da rua, mas não as notavam. De manhã cedinho ninguém se conhecia.
O cruzamento de carros era envolvido por oito caminhos de homens e que se encontravam dois a dois sem continuidade. Mais, significava oito caminhos que se abriam, a possibilidade de seguir adiante ou de tornar a qualquer dos lados, ou, quem sabe, ousadamente, voltar. Opções não notadas, inconscientemente desejadas, mas rejeitadas já no pré-natal pelo pavor do conflito da mudança com a necessidade.
O ex-caminhante agora estava preso na consciência de sua liberdade de pensamento e de seu dever pessoal e social de trabalhar e arrecadar dinheiro para si, sua família e a comunidade de seres humanos sem laços comuns e que não se olham verdadeiramente por toda uma vida, mirando ordinariamente o piso como numa viagem em um elevador lotado de “iguais”. A verdade falsa de uma escolha retalhada passava a atormentá-lo diante das possibilidades físicas de consumá-la.
A Esquina abria o horizonte que se apresentava assustadoramente como uma volta completa em seu corpo. Era como estar no cume de uma montanha inimaginavelmente alta sem possibilidades de descer, pois todos os lados, a poucos centímetros de seus pés, iniciava uma falésia sem apoios. Qualquer passo resultaria em uma queda, mas sem cair não tinha como saber o que havia lá embaixo, nem se a água era fria ou quente, nem mesmo se sobreviveria à queda.
A Esquina revelou o vazio em sua mente e a não percepção cotidiana do mundo à sua volta, das mínimas às grandiosas coisas. Todos seguiam sem um verdadeiro porquê, apenas cumpriam com as parcas obrigações, esperando o momento de serem substituídos sem saudade por outros desinteressados. Nunca se sentira tão só.
 Assustou-se com mais um berrante de aço e de repente a impressão foi se desvanecendo sem esforço. Não percebia exatamente como aqueles pensamentos o acometeram e como se ligaram. A efemeridade de um sonho que se enfraquece assim que acordamos, sólido e etéreo ao mesmo tempo.

Com um sorriso desorientado atravessou correndo entre motores a via rumo à indiferente esquina que há muito o esperava, e à continuidade de sua vida sem alcance, já esquecido de quem era e de toda a humanidade.