Não vou retratar aqui minhas más condutas, meus entorpecentes ou meus erros, nenhum segredo recôndito ou satisfazer qualquer curiosidade sórdida do desconhecido. O título é alusão a exatamente aquilo que parece ser, no entanto uma referência meramente tangencial, fonética poderia dizer, com mais afinidade com o relato que inicio que com a obra da qual extraí.
A questão principal é exatamente a titulada: meu nome não é Jano. Jano é um apelido carinhoso da redução de meu nome oficial, o qual é muito comum, está na boca de todos e de qualquer um, mas não para se chamar uma pessoa.
Minha mãe, quando grávida de mim, já me amava tanto que nunca se importou por qual seria o nome da criança. Não fazia diferença. Ela somente desejava com verdadeira paixão, mais que tudo na vida, que aquilo saísse de dentro dela, que a deixasse retornar à cintura cinquenta e poucos o mais breve possível; que não precisasse ir ao banheiro a toda hora para mijar apenas, pois a eterna prisão de ventre já havia arrebentado todas as hemorroidas possíveis de existir em um só buraco; nem se sentir como se tivesse gazes ou devorado uma vaca sozinha; que acabasse a sensação de ter comido um bicho vivo que não teve a decência de morrer após ser engolido e que tentava se libertar a todo momento esticando os membros aleatoriamente em seu ventre, pressionando ainda mais suas entranhas.
Para ganhar definitivamente a simpatia da nobre senhora de vinte e poucos anos que seria minha mãe para sempre, tive a esclarecida ideia de invadi-la, sem sua anuência, em abril ou maio, o que a matemática simples revela que o auge de seu sofrimento coincidiu com o verão tropical úmido. Nessa época do ano há dias com sensação térmica de cinquenta graus e umidade acima de oitenta e cinco por cento. Isso significa roupas banhadas de suor e coladas na pele para as pessoas comuns, que não carregam outro ser humano compulsoriamente há sete meses ou mais. Ela me adorava!
Eram os anos setenta. Ar condicionado era um artigo de luxo e luxo era um artigo desconhecido em casa de mamãe, antes mesmo de Jano, a (altíssima) despesa extra, dar suas caras através de sua vagina. E essa foi a cereja do bolo. Vim um pouco antes do programado pelo médico e pela astróloga – não sei ainda em quem mamãe confiava mais, mas acho que as estrelas estavam um pouquinho à frente da medicina –, e rasguei a bela menina como nenhum amante, por mais talento que apresentasse, poderia ter feito, antes ou depois de mim.
Minha mãe não me odiava, ela era indiferente, sem expressão afetiva. Cumpriu formalmente todo seu papel, com poucas reclamações. Hoje acho que teria lidado melhor com a rejeição explícita que com a sub-reptícia indiferença. Contra-agir é muito mais fácil e claro em face de outra ação, mas não vejo muito que fazer diante do nada, do não-feito. A ofensa pode ser aniquilada por diversas respostas, verbais, físicas, jurídicas, morais, imorais etc. Você pode não ser bem sucedido na resposta, mas ela foi dada. Como reclamar da conduta dos pais quando a comida está sempre em cima da mesa, você está na escola e não é cobrado, não é surrado por qualquer coisa, pode, enfim, ir e vir com mínimos questionamentos? Não tenho resposta. Sei que nada sei sobre isso além do que aglutinei involuntariamente em mim todos esses anos. Sei de mim, apenas.
Todos a consideram uma boa mãe, e eu não posso não concordar. Estou vivo, inteiro, íntegro segundo os parâmetros sociais que fui obrigado a seguir e acatar, não feio, embora ela fosse linda, tenho até nível superior que me permitiu conquistar um emprego público de grau mediano que me sustenta com um pouco mais de luxo, algo acima do básico, que ela poderia ter na mesma época de vida que enfrento hoje.
Afinal, a gravidez mesmo é que foi sofrida, um martírio. Embora esse desagrado fosse acontecer novamente em sua vida. Ouvi algumas vezes sobre as dores que ela sentiu para me “cuspir” e o alívio que meu choro causou. Mais alívio que felicidade, embora me vanglorie da certeza de que havia felicidade em algum grau, mitigada um pouco mais pela ignóbil mão do arquiteto genital que remendava sua vagina com agulha e linha. Desconheço exatamente qual a medida de simultaneidade desses acontecimentos, mas todos eles tinham um motivo comum, um gatilho: eu.
Meu pai era mais simples. Tinha o afastamento masculino de quem foi criado nos anos 50 e 60, sendo divertido em diversas ocasiões. Por isso mesmo, muito mais perigoso. Enquanto mamãe era a Justiça, analisava os erros e decidia as penas, papai era o Carcereiro, ou o Carrasco, dependendo da qualidade da pena: privação de liberdade ou corporal, junto com o discurso de ilibação da moral do condenado: eu de novo.
À época de meu nascimento, havia uma música que o cantor, e quem cantava, dizia que também iria reclamar disso e daquilo, que todo mundo agora reclamava, mas que ele, o cantor-autor se proclamava como o primeiro reclamante e, fatalmente para mim, dizia que já havia passado janeiro, mas se todos gostavam dele, o cantor, ele iria voltar. Meu pai logo sacou que janeiro era a referência a ter sido o primeiro em alguma coisa e achou o máximo. Falou com minha mãe que aceitou tão sem protestos quanto sem euforia, quase dando de ombros, abanando-se de calor, segurando uma barriga que não parecia ser sua. Ninguém reclamou.
Com o documento de nascido vivo, fui registrado no cartório mais próximo como Janeiro Alvarez Pires de Paiva. Isso aí. Era eu o primogênito desse casal casual, de todo desinteressado de tudo. O primeiro. Eu era Janeiro. Nascido em Janeiro. O infeliz e apático funcionário do cartório – não consigo vislumbrar instituição mais isolada das pessoas que um cartório, talvez um hospital seja – sequer deve ter se coçado para protestar contra um nome tão deslocado da normalidade, do comum. Simplesmente datilografou meu registro sem perceber que traçava as primeiras linhas do futuro de uma pessoa. Mal traçadas linhas, ressalto. Também não era culpa dele, não tinha nada a ver com as excentricidades alheias e, portanto, menos ainda motivos para se envolver. À quem não sabe, o oficial do cartório pode recusar registro e abrir procedimento ao juiz caso entenda que o nome a ser registrado possa causar constrangimento grave à pessoa. Não era o meu caso. Na visão desinteressada dele, ao menos.
Eu também iria reclamar. Repetidas vezes. Uma reclamação vazia, quase sempre muda, e invariavelmente inócua. Chamar-se Janeiro era motivo de risadinhas, mas estas só vinham depois que entendiam meu nome. Eram dois constrangimentos certos: fazer-me entender e suportar o depois de ser entendido, que poderia ser, nas pessoas educadas, um silêncio suave somado a um quase inaudível “ah, tá”. Ninguém acredita de primeira que você se chama Janeiro. Nunca tive desprendimento suficiente para deixar prá lá, simplesmente não me importar e sorrir diante da indiscrição do próximo.
Felizmente, não demorou a reduzirem um nome de três sílabas para duas, à guisa de carinho, e nascia assim Jano. O que resolveu pouco, pois a cultura de meu pai achou por bem me informar que Jano era um deus romano a quem se atribuíam os inícios, associado a portas, entradas e saídas, decisões e escolhas e que, por isso, foi referência para nomear o mês que me nomeia. Eu era Janeiro duas vezes.
(Portas! Não poderia ser o deus da guerra, dos mares, do céu, da terra, do fogo ou do ar?!)
Ainda tentei, porcamente, convencer e vencer meus colegas e amigos, principalmente os novos e os falsos, do orgulho que tinha por se chamado como um deus, mas esse deus era tão desconhecido e fraco na hierarquia olímpica que nunca obtive sucesso. Nem eu concordava. Logo desisti.
Aceitaria de bom grado, já que estamos tão próximos dos deuses, ser chamado de Hermes, nome grego de Mercúrio, o primeiro planeta do Sistema Solar. Primeiro, eu disse. Idênticos motivos. Pode ser que penso assim porque não me chamo Hermes, pois é muito provável que se assim fosse pediria para ser João ou José ou Rodrigo, como se chama meu irmão. Sim, tenho um irmão e logo estará em pauta. Mas meu nome é Janeiro e essa era mais uma forma para expandir meu lamento.
Pensei que quando me tornasse uma pessoa importante e madura, todos me chamariam de senhor Paiva ou doutor Pires ou Lorde Alvarez, nas fantasias mais felizes. Tentei forçar essa, mas nunca pegou, muito porque não sou médico nem advogado para ser chamado de doutor, ainda não tenho idade para receber o tratamento irremediável de senhor, menos ainda me tornei um nobre medieval para ser Lorde de Qualquer Gleba. Ao conhecerem meu nome de batismo, mesmo sem jamais ter sido batizado em qualquer religião, ninguém resistia a insistir sobre ele, muitas vezes me atribuindo alcunha de Jano pensando que estavam sendo originais.
Esse pequeníssimo engano era um dos poucos que me faziam feliz, pois poderia retrucar que todos já me chamam assim, deixando a pessoa levemente desconcertada por ter sido privada de sua pretensa agudeza de espírito. Logo era esquecida, essa minha módica vitória. Eu a apreciava ainda assim.
Daí, aceitei o Jano definitivamente como aceitei muitas outras coisas e acontecimentos em minha vida: simplesmente porque era “menos pior” que a alternativa. É um reiterado laissez faire, laissez aller, laissez passer em relação ao resto do mundo –– os outros seis bilhões de vivos.
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