Eugênio, arrastando os olhos pelo chão, lastreando seu passado como correntes atadas aos tornozelos, dobrou a esquina em direção à sua casa
com a certeza de que o pior havia passado com o término das homenagens fúnebres e que sua vida se multiplicava
amaldiçoadamente nova à sua frente, quando avistou o muro amarelo envelhecido
que principiava a descascar, tão familiar e tão estranho para sua mente alquebrada.
Estancou aprumado sob o sol escaldante sem precisão motora, absorvido
numa névoa de solidão que amortizava o suor que escorria por todo o corpo. O
calor inclemente transmitia uma indiferença do mundo ao sofrimento que o corroía serenamente.
O passo que o carregou de sua inércia não foi
percebido nem desejado, mas seguiu-se de outro e de mais outro, tão insolentes e impudicos quanto o primeiro, e continuaram a suceder-se numa profusão claudicante
sustentada pelo indissociável automatismo arraigado por tantos anos percorrendo aquela parca distância.
Quarenta e sete. Quarenta e sete sãos os
passos comuns de Eugênio da esquina ao portão, mas dessa vez não conseguiu percorrer o
caminho com menos de oitenta, devido ao encurtamento de sua vontade, à ambição
de não chegar que o afrontava pungentemente em seu peito. Seus pés aparentavam andar
um metro à frente de sua cabeça, que negava a necessidade de voltar àquele que
era, há dois dias, o mais prazeroso dos lugares.
Parou diante do portão branco encardido, deslizando as pontas dos dedos da mão pelo muro enquanto se aproximava,
procurando sentir que tudo não havia acabado, que a vida ainda insistia do outro lado. Os
acontecimentos eram desfocados, e as trivialidades da rotina, que o esperava e que cumpriria ordinariamente com
odiosa submissão, um peso muito superior ao que era capaz de suster, mas que manteria por incapacidade de abandoná-lo, pois intestino, e por penitência, convencido
de sua culpa pela Ausência imposta pelo imparcial destino.
Passou a chave antiga ouvindo o tilintar do
molho e o estalo do trinco, adentrou o território tão conhecido e o
reconhecimento trouxe mais solidão, que rasgava seu corpo com a prontidão e permanência do
incurável. Não conseguia reconhecer aquilo como dor, era inalcançável dentro de
si. Havia perdido tudo, seu único bem, aquilo que dava sentido aos tijolos
empilhados e cimentados que formavam sua casa, escondidos por reboco e tinta,
mas que estavam lá, mantendo seu lar material de pé.
A solidez das paredes e a funcionalidade dos
sistemas orgânicos da construção, a luz acesa a um toque e apagada a outro, repetidas
vezes sob o olhar límpido do dono; a água que escorre como magia das torneiras
e que desaparece com igual espanto por um buraco arquitetonicamente programado.
Tudo isso não fazia sentido nos pensamentos inconclusos da cabeça mutilada
pela perda. A um leve toque na mesa de jantar eternamente desfalcada emerge a imagem trêmula de um
sorriso que não mais lhe seria oferecido, com os seios da face - suas belas maçãs - lindamente apertados pelos cantos da boca que os comprimiam com o vigor da alegria.
A sensação da esquina invadiu autoritariamente a sala como um
intruso familiar, condensando o ar que parecia se transmutar em sólido tornando
impossível o esforço de respirar. O vazio e o desamparo, enfim, preencheram as veias de Eugênio, quando
observava da porta da cozinha as louças abandonadas sobre a pia e o fogão, amalgamando o real com a imagem embaciada das
costas que tantas vezes admirou e que jamais tornariam a estar ali, que seria incapaz de uma vez mais pesar sobre aqueles ombros macios e em movimento pelo esfregar da
esponja suas mãos ásperas, mas sempre carinhosas. A pia estava vazia de vida, como seu
coração, mas podia sentir a suavidade da pele morena que deixou plantada na
terra há menos de uma hora. Saiu da cozinha sem ter entrado, indiferente à
sede que o levara até ela.
Voltou a ver sua sala e, daquele ângulo inverso ao de entrada,
avistou o sofá, que não combinava com nada, arraigado num ponto do qual se avizinhava a porta da frente, invariavelmente aberta para que se pudesse ampliar o ambiente e o frescor. Sentiu
o cheiro tão comum dos cabelos negros que sempre se deitavam ao seu lado
enquanto lia uma bobagem importante qualquer, e sua visão se afogou em lágrimas arrependidas pela demasiada atenção dada às letras e menos àquela que sempre o
aqueceu com calores e amores silenciosos.
Eugênio sorria de tristeza sob as gotas
quentes que o queimavam face abaixo com uma felicidade amarga pelo já vivido, e que esperava um singular retorno da mulher. Viu a vida
fluir de seu corpo – a dele e a da esposa – no asfalto fervente, sob olhares
estranhos que juravam compaixão, mas que jamais poderiam compreender exatamente
de quem dos dois deveria se apiedar.
Sentia o calor dela em seus braços, deitada sobre
eles como tantas vezes se deitou no leito que os dois constituíram para viverem
eternamente; sentia seu olhar dominado pelo dela, inflamado pelo medo, mas inesperadamente seguro
por quem a amparava. Puxou Eugênio pela gola para perto de si, beijou-o resvalando seu lábio
salgado e seco, e soprou tepidamente em seu ouvido o último Eu Te Amo, que
pareceu aquecer e alastrar-se pela alma bipartida de Eugênio. Afastou-se
lentamente como quem desiste e apagou-se como uma vela no instante em que a chama
finalmente toca a cera derretida na base do pavio.
Sem se notar, acabou por tomar um banho, o primeiro
nesse desconhecido mundo só, bebendo água do chuveiro para aquela sede que se
viu oprimido, antes, a não saciar. Secou-se mal com a toalha do canto esquerdo,
que era a sua, observando a outra que pendia viva sobre sua cabeça.
Tudo o avassalava, tudo o fazia pensar na ausência e
maltratava seu corpo e seu espírito. Sentou-se do seu lado da grande cama
recostado na cabeceira, abraçou nu os fartos travesseiros que sobravam sobre os lençóis sem
disputa, lembrando-se dos dias que havia prometido viver e que não mais poderia cumprir. Murmurou “Helena” e
desabou sobre si, pesado, duro, eterno, umedecendo a intimidade perdida com
seus olhos e seu corpo.
Dormiu padecendo infelicidade.
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