
Passara
anos a fio por aqueles mesmos escombros a que chamavam de calçada, naquele
mesmo horário que convencionaram como cedo, com aqueles mesmos seres humanos
que se escondiam como pedestres, para o mesmo endereço que minimizavam como
obrigação. Cumprira aquele trecho de menos de cem metros de tortos concretos
infinitas vezes e, uma vez mais, aproximava-se da próxima rua.
Com
a cabeça um tanto baixa, alcançando impassível o cruzamento, uma luz mais
intensa pousou tepidamente em sua face. A fileira de torres elevadas ombro a
ombro chegara ao fim, repentinamente, como todos os dias antes deste, e o sol
insistente o encontrou. Ele desviou seu olhar morto do chão em direção àquela
luz estranha que o despertava. Avistou mais que a luz, avistou uma imensurável
dimensão de pessoas e que vinham ao seu encontro sem cumprimentos, e outras
mais que se afastavam sem despedidas.
O
fluxo de seus passos coagulou como sangue esvaído. Imóvel, permaneceu
observando quem vinha e quem ia. Seguiu a linha da calçada que encontrava com a
sua tornando-as uma e notou, não com a mente, mas em seu íntimo, que ela não
tinha fim. Como magia, seres humanos surgiam sem razão conhecida dançando seus
pés sobre ela e se aproximavam numa marcha zumbi. Olhou na direção oposta e o
mesmo fenômeno ocorria no outro encontro de calçadas, com a diferença de que
não havia ninguém parado por lá. Dois caminhos se uniam depois de conduzir
pessoas desde o infinito, desaguando-as ali, ao mesmo tempo.
À
frente, a rota que deveria seguir: mais duas intercessões de pedras portuguesas
mal ajambradas, separadas dele pelo asfalto. O sinal finalmente ficara verde e
todos pararam por ali como ele, mas não enxergavam o que ele finalmente era
capaz. Os dois encontros de caminhos se enfrentavam. As pessoas face a face,
lado a lado como os prédios atrás, não se percebiam. Olhavam as outras paradas
na margem oposta da rua, mas não as notavam. De manhã cedinho ninguém se
conhecia.
O
cruzamento de carros era envolvido por oito caminhos de homens e que se
encontravam dois a dois sem continuidade. Mais, significava oito caminhos que
se abriam, a possibilidade de seguir adiante ou de tornar a qualquer dos lados,
ou, quem sabe, ousadamente, voltar. Opções não notadas, inconscientemente
desejadas, mas rejeitadas já no pré-natal pelo pavor do conflito da mudança com
a necessidade.
O
ex-caminhante agora estava preso na consciência de sua liberdade de pensamento
e de seu dever pessoal e social de trabalhar e arrecadar dinheiro para si, sua
família e a comunidade de seres humanos sem laços comuns e que não se olham
verdadeiramente por toda uma vida, mirando ordinariamente o piso como numa
viagem em um elevador lotado de “iguais”. A verdade falsa de uma escolha
retalhada passava a atormentá-lo diante das possibilidades físicas de
consumá-la.
A
Esquina abria o horizonte que se apresentava assustadoramente como uma volta
completa em seu corpo. Era como estar no cume de uma montanha inimaginavelmente
alta sem possibilidades de descer, pois todos os lados, a poucos centímetros de
seus pés, iniciava uma falésia sem apoios. Qualquer passo resultaria em uma
queda, mas sem cair não tinha como saber o que havia lá embaixo, nem se a água
era fria ou quente, nem mesmo se sobreviveria à queda.

Assustou-se
com mais um berrante de aço e de repente a impressão foi se desvanecendo sem
esforço. Não percebia exatamente como aqueles pensamentos o acometeram e como
se ligaram. A efemeridade de um sonho que se enfraquece assim que acordamos,
sólido e etéreo ao mesmo tempo.
Com
um sorriso desorientado atravessou correndo entre motores a via rumo à indiferente
esquina que há muito o esperava, e à continuidade de sua vida sem alcance, já
esquecido de quem era e de toda a humanidade.