Quando eu
acordei a primeira vez, imaginei que tinha ficado cego. Sabia que meus olhos
estavam abertos, mas só via escuridão. Imediatamente quis me levantar em
desespero, mas bati com a cabeça em alguma coisa. Foi uma batida fraca, pois o
objeto estava bem próximo a ela. Quis trazer minha mão à testa para esfregar o
local da pancada, mas ela se prendeu numa lateral rígida, resvalou no teto e
ficou contida pelo cotovelo que se prendia em V nas bordas. Tentei sair para os
lados, me virando, mas mal consegui dobrar os joelhos.
Isso foi há
algum tempo, antes de meu primeiro desmaio. Não sei quanto se passou. No escuro
imóvel não dá para contar. Todas as nossas referências de vida deixam de
existir, exceto você mesmo. Largura, comprimento, tempo, espaço, tudo, nada,
certo, errado, cima, baixo, verdade, mentira, minutos, horas, sabedoria,
ignorância, bondade, maldade. Só resta sua mente e o calor. O ar entra quente
em seu corpo e por imposição, denso, preenchendo seus pulmões com odor de
terra, pesado, quase sólido, sufocante.
Claro,
pensa-se nisso tudo depois de gritar até a dor o emudecer, socar e se debater
até os dedos se quebrarem, espernear até não sentir mais os pés, suar banhando
o leito, e Chorar feito uma pequena criança, com lágrimas saindo em profusão,
acompanhadas pelo ranho que escapa do nariz escorrendo pelo canto do lábio,
contornando o pescoço até a nuca, provocando uma sensação que sempre me foi
repugnante, exigindo uma limpeza imediata com as costas da mão. Este movimento
reflexo natural e mundano é interrompido pela dor dos dedos quebrados tocando
ferozmente a madeira. Eu sei que é madeira.
Súbita e
inesperadamente lhe abraça uma calmaria maléfica, que se mostra, todavia, ser a
precursora do pior dos momentos. Ideal era se quebrar todo ao ponto de cessar a
tortura de saber-se ali. Nela, você se enxerga, se percebe, mira com precisão
seu destino, raciocina, enfim. A calmaria faz pensar fisicamente no sofrimento,
ter consciência dele, e logo se espanta e se desespera exatamente por efeito
dessa dose nefasta de consciência, o que o faz quebrar mais um dedo pelo menos.
E apago em resposta.
Acordo
contra minha vontade com o suor inundando meu corpo, o que prova que estou
desgraçadamente vivo. Cinicamente, meus órgãos continuam funcionando, com
eficiência indiferente ao meu espírito: respiro, meu coração espalha meu sangue
pelo corpo, pisco, salivo, produzo hormônios e inúteis espermatozoides,
leucócitos avançam sobre vírus e bactérias — tão vivos quanto eu — protegendo
minha saúde. Acho até que daqui a pouco terei que mijar. Simples assim, como se
eu pudesse me levantar até o banheiro, colocar o pau pra fora e molhar a borda
da privada como de costume. Penso nisso enquanto choro mais uma vez. Nesta
versão, um choro contido, triste, desalentado, como que abandonado. Quando uma
merda dá as caras em sua vida, ela vem perna abaixo.
Respiro
fundo e tenho uma ideia. Começo a respirar bem rápido para consumir todo o ar
que me resta e acabar logo com isso. Inspiro e expiro com tanta avidez que meu
cérebro fica hiperventilado. Logo sou tomado por uma tontura causada pelo
excesso de Oxigênio e reconheço o vão cansaço da tarefa. Rio grotescamente por
estar pleno e meio dopado daquilo que logo me faltará e me extinguirá, e porque
me lembro das bolas de aniversário que enchia vigorosamente quando garoto e que
provocavam a mesma sensação. Neste momento revejo o rosto de minha Mãe e viro o
meu de lado, fechando os olhos, para escondê-lo de vergonha. Cerrar os olhos no
breu da morte. Ironia!
Vergonha
pela vida que levei diante de tudo que ela esperava de mim. Mas ninguém se
encontra como eu por nada. Não leva tiro quem está na missa. Fiz tudo errado.
Nem da desculpa de que tentei acertar eu posso me orgulhar. Eu sempre soube que
meu caminho era torto. Esperava acabar com uma bala na cabeça, nas costas,
explodido dentro de meu carro, submerso de pés acorrentados, sei lá, como em
muitos filmes acontece. Nunca imaginei que pouparia o árduo trabalho de meu
coveiro. Como sou bom.
Cumpro a
experiência do filósofo. Estou aqui, suspenso sob a terra, sem contato com
quase todos os meus Sentidos, salvo o tato — a dor. Assim experimento minha
Mente como algo separado de mim mesmo; quase posso voar, a não ser pela pequena
restrição que me aflige. Eu me vejo. Não fora do corpo, mas ao largo de minha
consciência cotidiana invariavelmente arraigada ao Normal. Uma liberdade tão
ampla e vaga quanto insólita toma conta de mim, da sobra de mim. Não há nada
material aqui embaixo, nenhuma barreira sensorial. Eu me vejo, assim,
moralmente, e não gosto de quem sou, julgo. Já não morria de amores antes,
agora, sem luz e sem fuga, não me orgulho intensa e imparcialmente daquilo que
me tornei e como me tornei.
Observo
minha vida diante da morte e Grito, ou imagino gritar. O que restou de minha
voz, não me parece real, e sim de outro. Já não posso afirmar se ela realmente
sai pela minha boca ou se apenas repercute em meu cérebro inebriado, uma ilusão
imposta por uma mente em Desconstrução. As certezas mais próximas vão me
deixando, espargindo a realidade em perdigotos insubstanciais. Calor e suor são
as únicas verdades que me mantêm em contato com a concretude da vida. Sempre
odiei a sensação do suor escorrendo a conta-gotas sobre a pele e estaria fadado
a me afogar nele se não fosse me afogar, antes, em dióxido de carbono.
Esses pensamentos
me dão a esperança de que tudo está prestes a terminar, torço com comoção pela
chegada de alucinações que me distanciem desta dolorosa imobilidade negra.
Devo ter
perdido os sentidos por mais algum tempo. Ou será que apenas pisquei os olhos
numa fração de segundo? Nessa minha nova casa, onde desperto com insistência, o
Tempo não reside. Sinto que estou vivo há milhares de anos e que ainda viverei
outros milênios durante os próximos minutos. Tanto faz. Eu não me pertenço. Mas
eu existo… ainda.
Será que eu
já morri? Será que minha mente atingiu a escuridão tépida de algum útero
inseminado e poderei viver uma vez mais?, uma nova vida? Dedos incrustados de
sangue e lancinantes espasmos nas costas inertes me provam que ainda sou eu
mesmo, o eu-agora. Sacudo o corpo em desespero por ser eu-ainda.
Mijei. Sinto
o cheiro que me traz de volta. Sinal de vida, lamento. Agora parece que minha
vida jamais existiu. Todos que conheci e tudo que fiz, as decisões que tomei,
soam irreais, fantásticos, como sonhos distorcidos mal contados por outra
pessoa de uma era esquecida. Desapareço da mesma forma que a árvore que cede ao
tempo e Cai numa floresta obscura e sem testemunhas, sem alguém para ouvir o
som da madeira se rompendo e das folhas farfalhando durante a queda, nem para
apreciar o vazio deixado por aquilo que já não está mais lá. Como se jamais
tivesse sido real.
… uma
pequena dificuldade de respirar… leve… deve aumentar… tomara…
A dor
diminui, não percebo mais se estou deitado... Flutuo. Uma pequena ânsia de vômito,
mas a engulo logo, porque não mereço mais essa desonra. Minhas pernas já dormem
faz muito tempo.
Estarei com
sorte?
Terminarei,
contudo, Livre.