sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Meu Nome Não é Jano - Dois


mencionei que minha mãe, apesar de como encarou a experiência anterior, teve uma segunda gravidez e que dela surgiu meu irmão, agraciado com o nome comum, normal mesmo, de Rodrigo. Eu esperava que se chamasse Fevereiro, para logo apelidá-lo de Febo, mas meu pai já havia mudado de fase de vida, assim como minha mãe. O tão esperado Febo, que me eximiria da exclusividade da vergonha, traiu-me antes de ter conhecimento do significado de traição. Pérfido! Invariavelmente eu o amava, no entanto, e sorria para ele por sua boa sorte de ter menos uma pequena dor a que se curvar durante sua vida. Uma pequena leveza imperceptível e desprezada por aqueles que não sofrem do mal que a aniquila.
Portanto, eu estava sozinho nessa. Não havia com quem dividir o sofrimento. Retinha aquela sensação de desamparo geral que nos aflige como quando nos perdemos em uma cidade estranha que não conhecemos o idioma, ou quando o carro quebra em local ermo sem telefone ou sinal. Nesses momentos, a companhia de um companheiro de cela nos torna mais fortes e confiantes, pode mesmo transformar a circunstância em divertimento, e uma boa história a ser contada por duas memórias independentes e ligadas por um fato angustiante que em algum momento irá passar. Mas meu fato é perene e invariavelmente solitário.

Nunca imaginei que poderia estender tanto sobre um assunto de mérito tão duvidoso, mas esse discurso pode ser considerado entre as primícias de uma vida lamuriosa. Uma vida que me parece ordinária, embora especificamente minha, pois não há conversação entre nós, Humanos, que não envolva algum, por mínimo e imperceptível que seja, tipo de lamento, queixa, indignação, choro contido, expectativa frustrada, culpa, acusação, desdém, desprezo, ressentimento. E meu elementar gemido, meu primeiro pranto, meu sinal de vida, é minha designação leviana, minha alcunha pueril.

Esta é a terceira parte da história de Jano, que vai se construindo por si só e foi iniciada nos textos abaixo:

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A Praça

Antenor estancou como um jegue na seca com excesso de carga em plena praça pública antes das seis da manhã, quando foi fuzilado pela imagem rascante de corpos espalhados pela praça que se habituara a sempre cortar pelo caminho central duas vezes por dia rumo ao trabalho. Não viu diretamente, primeiro porque pousava suavemente os olhos no chão, e segundo porque tais coisas etéreas que flanam na mitologia das ruas não são possíveis enxergar frontalmente, mas apenas com aquele canto de olho, o pedante soslaio, o comum de esguelha, que por não ser o foco principal da visão, não é obscurecido pelas barreiras levantadas pelos costumes, pela ética e pela moral da sociedade, que salvaguarda o espírito do indivíduo dos males disponíveis. Um momento de mínima atenção por esse fugaz ângulo do campo periférico da visão foi suficiente para fazer algo em Antenor despertar.
Parado sob a brisa tépida matutina e a claridade nascente do sol, era ultrapassado e trombado por pessoas que resmungavam pressa, incapazes de enxergar o terror a que era submetido, cegos da mesma forma que ele próprio há poucos instantes. Aqueles corpos estavam lá, caídos, arriados, com pernas e braços entrelaçados como um Kama Sutra cadavérico, cabeças apoiadas em objetos indefiníveis, bocas abertas, olhos semicerrados, encolhidos ou esticados; e todos continuavam suas caminhadas sem se conter, sem perceber.
Antenor perscrutava em volta querendo gritar para que todos parassem em socorro, pois havia pessoas abandonadas pelo chão, em beliche sobre e sob bancos da praça, estirados na grama orvalhada, inertes, vivos ou mortos debaixo da única árvore, sujas, feridas e doentes. Conteve-se e deu mais um passo, inseguro, em direção ao trabalho; repetiu um segundo passo, numa cadência claudicante mal ajambrada, numa linha reta imprecisa, teso e tenso, perguntando-se desde quando aquela gente estava ali tão perto, quando chegaram, e quem havia permitido que ficassem. Não se moviam e temia atentar se respiravam, pois a negativa urgiria uma ação que não queria tomar.
Caminhou lentamente pendulando entre os rudes protestos daqueles que vinham atrás abraçados em suas pastas e bolsas, bafejando seu rosto com mau humor e resmungos ininteligíveis entre dentes, que o empurravam até o outro lado, atravessando a praça carregando seu espanto despercebido. Era-lhe impossível deixar de notar à sua volta os corpos que orlavam a certa distância a estreita trilha que forçadamente cruzava levado pela vaga da multidão.
Sentia um vazio sem dor em sua mente que o abobalhava a respeito do que deveria fazer, não sabendo corresponder o certo e o errado, estabelecer o significado de tantas pessoas largadas e ignoradas pelo chão, à sombra dos demais, representando um mera penumbra do ser humano, amortecidas pelo álcool e outros anódinos de desalento.
Quando o caminho se alargou ao atingir a calçada do ponto oposto que viera, parou novamente, girou o corpo sem se aborrecer com a ombrada de uma loura alta que tocava pesadamente o cimento com seus saltos vermelhos descombinados com o resto, mas que estabelecia profunda simpatia com aquele humor degenerado pela obrigatoriedade do trabalho e do dever imposto.
Chegou um pouco para o lado evitando a torrente humana, aprumou-se, focou a vista, tornou a cabeça indo e vindo cento e oitenta graus para analisar na praça, com as mãos na cintura como quem exerce autoridade sobre uma criança, aqueles que dormiam diante dos céus, mas o único sentimento que o acometeu foi o alívio em seus ombros por deixar aquela senzala pública. Uma vez fora, já não pertencia mais àquele sofrimento sonâmbulo, e seu aspecto medonho o havia abandonado, tendo sido deixado para trás naquela trilha de percalços.
Entendeu-se com sua consciência que a vida era assim mesmo, forçou-se em nome da moral apropriada a permanecer mais alguns segundos diante daquela cena inóspita provando para si mesmo que se importava e, com maior valor, que não havia nada que pudesse ser feito por ele. Culpou com toda a veemência que um pensamento solitário e isolado pode conter o poder de governo que desdenha da condição de seus cidadãos; recuou um passo em ré; verificou o relógio no punho direito; suspirou grato pela necessidade que o obrigava a seguir; os braços penderam ao lado da cintura fazendo cair um pouco os ombros gerando uma breve imagem abatida; mais uma vez girou o corpo sobre o calcanhar atrasado; e seguiu seu caminho.
E esqueceu. Trabalhou; almoçou; trabalhou.
Na volta, à tardinha, dobrou uma esquina antes da praça, obedecendo a um instinto que não era capaz de identificar.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sábado

Delemário chega à cozinha às dez para as seis ávido para tomar o seu café matinal. Pega o vidro da cafeteira, vê que o café é de ontem, provavelmente de ontem de manhã. Resmunga algo ininteligível, mas que certamente é voltado para sua esposa. Esvazia o café frio no ralo da pia sem deixar sua insatisfação fugir com uma careta de reprovação. Pega um canecão de alumínio, daqueles bem comuns, com alça de plástico preto duro, enche de água até a metade, pensando involuntariamente que nada pode estar cheio pela metade, e coloca no fogo.
Cruza a cozinha de um lado ao outro inúmeras vezes enquanto decorriam os infindáveis quinze minutos para a água ferver. Um dia normal, até que a água ferveu. Retirou do fogo e colocou o canecão na pia de mármore branco, com aquele paninho de prato que se pendura na alça da porta da geladeira, mais uma vez se perguntando porquê esse hábito milenar. Parecia que já penduravam panos de prato na alças das portas das geladeiras antes de existirem as geladeiras. Encheu as costas da cafeteira de água, quando se lembrou que não precisaria ter esquentado a água, a cafeteira era elétrica. Outro velho hábito.
Abriu o pacote de filtro de papel que pegou no armário sobre a pia e ajeitou-o como deveria. Tudo corria tão naturalmente que Delemário nem pensava no que fazia, sem contar, claro, o pano de prato na porta da geladeira e a água inutilmente fervida no fogão com o canecão meio cheio ou meio vazio. Abriu novamente o armário sobre a pia para pegar o pó. Colocou o pote sobre o mármore frio da manhã, abriu e fez outra careta: acabara o pó de café.
“Dulce!”, chamou, num tom que pretendia ser atendido por ela do quarto e que tentava não ser ouvido pelos vizinhos de condomínio. Sempre prezou pela boa convivência com seus vizinhos.
Nada, nem um gemido.
“Dulce, cadê o café?”, repetiu, certo que a explicação de sua vontade facilitaria a audiência de sua esposa.
Nada, nem um gemido.
“Porra, Dulce…”, dessa vez baixinho para si mesmo, enquanto saía da cozinha para o quarto. Abriu a porta e viu a esposa, consumindo obliquamente todo o espaço da cama com suas pernas abertas e de bruços, com o bundão balzaquiano cumprimentando quem estivesse na porta, o braço direito esticado com o cotovelo dobrando para baixo quando a lateral da cama acabava. O esquerdo se curvava do outro lado com a palma para cima tocando o rim. A perna direita dobrava em ângulo reto, o que lhe dava uma posição meio-de-lado. O pé esquerdo fugia da cama apontando para o chão, alinhado com a perna esticada. Não conseguiu distinguir seu rosto, de lado e virado para a parede, coberto pelos cabelos louros. Vendo essa expressão de conforto às seis e dezoito da manhã de sábado, desistiu de acordá-la e voltou para a cozinha. Era uma questão dele se acordava cedo sempre, inclusive nos feriados nacionais. Dulce não merecia isso e deixou que continuasse dormindo.
Vasculhou todas as portas da cozinha e não encontrou o pó. A água fervida acentuava sua inutilidade à medida que esfriava. Finalmente, como uma iluminação divina que acomete os homens desabituados às disposições domésticas, após quarenta minutos acordado sem conseguir tomar seu café, foi verificar a despensa, que ficava atravessando a área de serviço com a máquina de lavar e o tanque. Na primeira porta, o pacote de pó saltou para suas mãos, que pareciam trêmulas como a de um viciado em abstinência, derrubando o pote vazio que carregara até ali e espalhando um restolho de pó na chão frio. Seu frenesi o fez passar com destreza pela área de serviço sem notar as poucas roupas penduradas no varal havia dois dias.
Colocou o pó dentro do filtro da cafeteira e ligou, derrubando um pouco e salpicando a alvura fria do mármore. Pegou a vassoura e a pá de lixo e voltou para a despensa. Ou quase. Na porta da cozinha para a área de serviço parou assombrado. Um ponto vermelho havia invadido seu campo de visão e o fez estacar como um burro no meio do caminho entre a fazenda e o mercado. Olhou para cima e avistou o objeto curioso. Percebeu do que se tratava num átimo, mas levou mais alguns segundos para assimilar conscientemente. Baixou o varal e pegou uma calcinha vermelha, cheirosa de amaciante e sabão em pó.
Analisou a calcinha como quem brinca com um elástico entre os dez dedos, puxando aqui e ali, levantando à altura dos olhos, virando e revirando. A cor. A cor era o mais intrigante. Há anos não via uma cor dessas dentro de casa. Pelo menos uns quatro ou cinco anos, depois que a euforia do casamento havia amainado numa bonança individualizadora, com as tarefas, as brigas e o sexo bem definidos tendo, cada um, data, hora e culpado programados. Até as pazes eram previsíveis e, às vezes, lhe rendiam um sexo extra, talvez com preliminares se tivesse razão ou se desculpado adequadamente. Mas uma calcinha vermelha mudava tudo, ainda mais lavada às sete horas da manhã de um sábado qualquer.
Revirada nas mãos, notou a renda que deixava translúcida a parte da frente e o fio único que supostamente serviria para proteger a retaguarda. Esta parte iria precisar de reforços, pois havia um único soldado. O fio era tão fino que seria tragado por qualquer par de nádegas minimamente desenvolvido. Até as de Delemário. Pelo bundão da Dulce, então…
O bundão de Dulce… O que o bundão de Dulce estaria fazendo com um risco vermelho desses desaparecendo entre seus Alpes? Para quem? Seus rosto, aos poucos, ia igualando-se à calcinha em suas mãos, ao mesmo tempo que a cafeteira transpirava o vapor d’água. Mal percebeu o cheiro de café tomando conta da cozinha, um dos poucos prazeres que Delemário preservava depois de ter se casado.
Dulce apareceu na porta e viu Delemário de costas com alguma coisa na mão. Parecendo um sensitivo de filme de ação ou de terror, perguntou a Dulce sem se voltar.
“O que é isso?” e direto, sem rodeios: “Pra quem é isso?”
“Como assim, Dê?! É minha!”, parecendo pouco impressionada. “Acordei com o cheiro do café. Está uma delícia, como sempre”, imaginando o assunto estar encerrado.
“Que tipo de calcinha é essa? Deve ter custado menos que um real, pois o custo com pano foi irrisório”, disse, tentando ser irônico o suficiente para convencer a esposa sobre sua indignação.
“Tipo que se coloca por baixo das calças ou das saias. Geralmente é utilizada por mulheres, mas se quiser experimentar…” Essa, sim, foi irônica, matando o espírito de Delemário.
“Dulce, eu nunca vi uma calcinha dessas aqui em casa, só quando namorávamos e, mesmo assim, no início, na faculdade. Depois disso, só vejo cor-da-pele com cara de calção. Que porra é essa?”. O “porra” parece ter acordado Dulce, ofendida.
“Como assim Delemário? O que VOCÊ quer dizer com isso? Que eu estou te traindo?” Delemário estava possesso. Nunca havia desconfiado de Dulce antes e pouco demonstrado ciúme, mais até para agradar Dulce, que dizia que quem não tinha ciúmes, não amava de verdade, e que na dose certa temperava a relação sem salgá-la. Mas o vermelho tomava conta do corpo de Delemário e o ensurdecia para as palavras de Dulce, fazendo com que a realidade bege de seu casamento fosse destruída. Tudo mudara. Continuou, portanto.
“Essa coisa vermelha, que nem esconde o seu rabo, deve ter sido comprada para sair com alguém. Quem é, Dulce? Quem é o filho da puta que está te comendo? Esse lado aqui até está puído. Tem usado muito? Como eu nunca a vi? E, de repente, ela secando no varal.”
“Você está falando sério, Dê? Está desconfiando mesmo de mim?”, respondeu entre perplexa e irada. O tom ainda era baixo, mas às oito da manhã de qualquer sábado, parecia uma batida de carro.
“Deve ser o Andrade, aí de cima. Eu percebi você e ele no elevador.”
“Que elevador, Dê?”
“O social, com espelho.”
“Não, Dê. Quero dizer que nunca houve nada em elevador nenhum, nem de serviço, nem social. E quem é Andrade? Do Flamengo?” Era o sarcasmo que matava Delemário, mais ainda que a ironia, terminando o serviço que o escarlate tecido começara. Delemário já não era mais Dê, só Dulce não percebeu.
“Não me sacaneie, Dulce. Todo o prédio já deve estar sabendo. Delemário, O Corno. Com um nome como o meu, já devem até ter inventado uma rima. E as velhinhas gêmeas do 19? Bem vi que quando passo uma fala com a outra, que me olha de lado e mostra um ou dois daqueles dentes falsos. Todo mundo deve estar rindo de mim, principalmente o Andrade.”
“Quem é Andrade?”
“Não se faça de besta! O vizinho de cima. Aposto que foi só ele falar sobre o tempo no elevador que tudo começou”, de um jeito como quem informa o óbvio.
“DELEMÁRIO! Você passou de qualquer limite. Nem temos vizinhos em cima.” Indignou-se convicta.
“Não se faça de besta!”, repetiu, agora demonstrando clareza de raciocínio.
Um instante de silêncio foi suficiente para a certeza preencher todo o vazio que o vermelho havia instaurado. Imaginou-se em casa ou no trabalho e a esposa com o Andrade, se olhando no espelho do elevador ou se contorcendo nas escadas, com a calcinha vermelha caída até os tornozelos, sacudindo conforme a maré. O porteiro vendo pela câmera de segurança, as velhinhas sabendo pelo porteiro, os risinhos estreitos que entremeiam o “pouca-vergonha” de praxe que as senhoras exaram quando deparadas com prazeres que não são mais capazes de possuir ou que nunca tiveram. E das passas-gêmeas o mundo inteiro saberia. Já sabia. E ria. Uma gota de espuma prendeu-se no lábio inferior de Delemário, sem que os dois presentes se dessem conta.
 Com uma xícara de café na mão, Dulce protestou: “Estou muito chateada c…” A frase de Dulce ficou pelo caminho quando Delemário irrompeu pelo corredor até o quarto. Parou dois passos dentro do recinto conjugal, como que pensando no que viera fazer ali. Num momento, olhou para cima, mirando entre o teto do guarda-roupa e o teto rebaixado em gesso. Abriu a porta do segundo nível do armário, colocou um pé na cama por fazer e o outro em cima de algumas camisas bem passadas. Segurou com a mão esquerda o nível superior e com a direita tateou por cima da cabeça por vários segundos. Quando tocou o que queria, foi puxando com a ponta dos dedos, centímetro por centímetro até que pudesse abraçá-lo com toda a mão.
Trouxe para baixo uma caixa de sapatos sem sapato. Pousou sobre a cama, entre uma dobra da manta embolada e o lençol que se desprendia da parte de baixo do colchão. Dulce sempre se mexeu muito na cama e a dominava todas as noites, pelo menos durante o sono. “Será que ela e o Andrade deixavam a cama assim?”, alimentava a própria raiva.
Abriu a caixa e admirou por outros intermináveis segundos seu conteúdo. Uns seis ou sete segundos. Pegou a arma e verificou as cinco balas no tambor. Não pensava, odiava. Ouvia risos e gemidos se misturando, dedos apontando, o vermelho turvando sua visão.
Chegou à porta da cozinha com a arma na mão direita, que pendia de um braço morto colado ao corpo por um ombro sem forças que se escorava no portal, e a calcinha vermelha na mão esquerda. Dulce não percebeu, pois estava na pia, de lado para a porta de Delemário, manuseando a xícara debaixo do feixe de água fria que, como magia, saía da torneira, concentrada em retirar o sabão que se impregnava, com a cara fechada que Delemário lhe presenteara nesta manhã.
“Dulce”, chamou brandamente Delemário, colocando a mão armada por trás da parede na qual se apoiava.
“Não enche o saco, Dê. Você vem me acusando de infidelidade só porque encontrou uma calcinha nova no varal e quer conversar com esse tonzinho de desculpas? Não tô afim.” Continuou, largando a xícara no escorredor e pegando o canecão sobre a pia. “A calcinha era para o seu aniversário, nem experimentei na loja.”
“Como pode mentir mal assim, com essa cara de santa? Ela estava lavada. Deve ter usado muito.”
“Delemário, seu babaca, ninguém usa calcinha direto da loja. Outras mulheres, que sei lá com quê catinga entre as pernas, colocam essa merda. Sempre lavo minhas calcinhas antes de usar. Nem experimentei ainda.”
“Faz tempo, viu?! Faz tempo que percebo que nossa relação vem mudando. Você vem mudando. Não se importa mais comigo, não me procura na cama e, quando consigo um pequeno prazer de você, parece que não se dedica ao sexo, é só burocrática como se cumprisse uma ordem judicial.”
Faltava pouco. Dulce bateu com estrondo o canecão no mármore, escapando de sua mão e caindo com estardalhaço metálico no piso envelhecido da cozinha, às oito e trinta e cinco. Ambos observaram até que o barulho parasse de ressoar em suas cabeças. Aquilo só exasperou ainda mais o casal: Delemário porque considerou uma burrice feminina deixar cair daquele modo o canecão; Dulce porque atribuiu a culpa daquele estrondo à insensatez masculina de Delemário. O ódio recíproco crescia no silêncio mútuo dos dois. Ninguém se mexia para pegar o canecão. Mal se respirava, até que Delemário fala.
“Tá vendo?”
Aquilo, para Dulce, era como resumir todas as ofensas que ouvira até hoje e incluía todas as pequenas coisas que tivera que aguentar pelo seu casamento. Falou.
“É isso mesmo, Delemário. Você não merece o presente que eu ia te dar. Não merece nada. Burra sou EU, que aceitei seu machismo depois de uma faculdade juntos e cedi ao ‘mulher minha não trabalha’. Ultimamente você só chega tarde da noite, não percebe meus esforços dentro dessa casa, nem elogia minha comida, some nos finais de semana sempre tendo um futebol ou churrasco para ir, quando não são as duas coisas!, com amigos antigos que surgem do nada e que nunca são os mesmos semana após semana. Vive nos botecos e eu fico aqui, em casa, esperando. Uma vida esperando você. Você não merece nada. Esperava fazer alguma coisa voltar a ser como era antes de nos casarmos. Sua agenda sempre está cheia demais para mim. E mais, essa sua teoria antiquada sobre o trabalho da mulher, sobre o meu trabalho, só acabou nesse fiasco financeiro que é a nossa vida, sem qualquer perspectiva. Sua profissãozinha de merda não vale nada, já que você não tem ambição, não é homem de se tornar dono de alguma coisa, de arriscar, como poderia ter feito há três anos. Você trabalha como um corno para ganhar um soldo de cabo do exército.”
A única coisa que Delemário ouviu com clareza no discurso verdadeiro de Dulce foi “corno”. Estranhamente, esboçou um sorrisinho mínimo que ditava “não falei?”, e que confirmava sua vergonha diante de todo o prédio e de sua consciência. Por regra universal, ele era o último a saber. Anteviu os risos das velhas gêmeas do 19, com aquele olhar paralelo em sua direção. E o que diriam entre si? E o que diriam aos outros? E o Andrade?, satisfeito depois de transar com Dulce e apertando minha mão ainda com o cheiro dela impregnado no indicador e no médio.
O que o dilacerava era o conhecimento geral. Dividir a esposa na surdina doía, mas ver sua vergonha disponível a todos, era intolerável, rascante. A verdadeira traição para Delemário era tornar pública sua ignomínia. Delemário continuava num ódio vermelho, fica ereto descolando-se do umbral com um leve jogo de ombro, o que permite que Dulce veja a arma.
Dulce baixa os olhos na direção da cintura de Delemário, que não sabe se ela vê a arma ou a calcinha, e solta um risinho monossílabo de canto de boca expelindo ar quente por ele, anunciando cansaço de tudo, logo às oito e quarenta e quatro. Para Delemário, aquele foi o último escárnio: rir de sua dor e duvidar de sua virilidade.
Dispara como John Wayne, ou Charles Bronson, contra Dulce, que cai morta no meio da cozinha ao lado do canecão e sangrando, com o esgar debochado colado no rosto, agora, para sempre. Delemário sobe cinco andares de escada, não que pretendesse escapar à prisão, só não queria ser pego antes de cumprir sua redenção. Tocou a campainha e esperou. Devia ser quase nove horas, mas esses tipos de pessoas acordam cedo. Em pé, diante da porta de madeira, pensava somente naqueles dentes falsos à mostra, persistindo uma leve inquietação sobre a culpa. Apesar de tudo, não queria ser injusto. Com um simpático “bom dia”, uma velha atendeu. Aquela simpatia excessiva, a inclinação do “i”, e num sábado pela manhã, tudo demonstrava cabalmente a cumplicidade com os fatos daquela senhora de camisola branca e bolero cor-da-pele sobre ela. Uma combinação que, por um décimo de segundo, Delemário não soube dizer se estava certa, para logo em seguida retomar em sua mente a vergonha rubra que o inflamava. O primeiro disparo passou bem rente à axila direita da primeira gêmea, que mal teve tempo de se assustar. O segundo tiro, ajustada a mira pelo primeiro erro, cortou o decrépito coração da simpática senhora.
Entrou no apartamento saltando o corpo que tinha os olhos vidrados no teto e os dentes odiosos à mostra sem sorrir, atravessou a sala e estava no corredor que leva ao quarto principal quando se deparou com a outra gêmea, molhada com uma toalha vermelha cobrindo o corpo. Somente um surdo “ah!” de susto, um estampido seco e a última gêmea gemia no chão. O ombro destruído e possivelmente em estado de choque. Mais um tiro e faltava pouco para ninguém mais rir dele.
Descendo as escadas para o décimo quinto andar, Delemário se surpreendia por não aparecer ninguém. “Será que este mundo está tão acostumado com tanta loucura e violência que não reagiam mais aos sons de tiros? E tão perto, nos corredores! Não. Todos conhecem e gargalham dos meus chifres. Já esperavam por isso. Estão prevenidos. Sabiam que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Uma profecia que se cumpre, nada mais.” Por isso a calmaria, arrematava, assim, seu pensamento.
Chegou no apartamento sobre o seu. De novo parou na porta, pensando nos seis anos que havia vivido com Dulce nesse condomínio. Tocou a campainha, que não emitiu qualquer som. Testou a maçaneta que se abriu com facilidade. Entrou com ímpeto, o corpo à frente de seus pés, inclinado como uma fera num ataque, berrando “Andra-deeeee”. Percorreu todos os cômodos até perceber que não havia ninguém, não havia nada. Estava tudo vazio. Chegou à cozinha, que era idêntica à sua, salvo por estar apenas com um pequeno criado mudo no centro.
Aproximou-se e abriu a primeira gaveta com a mão que segurava a calcinha vermelha. Havia um papel. Leu. Nele constavam a frase “Vendo (em inventário)”, um nome, um número de telefone, encerrado pelo título profissional “corretor de imóveis”. Havia uma data também, de doze anos antes.
Empalideceu.
Não soube como estava de volta à sua cozinha. Dulce na mesma posição, mais pálida, mas com o deboche colado ao rosto.
Delemário levantou a camisola de Dulce e começou, perto de nove e meia, a colocar a calcinha vermelha pelos calcanhares da esposa.
Não passou pelo bundão. Não coube.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Nova Vida

Eugênio, arrastando os olhos pelo chão, lastreando seu passado como correntes atadas aos tornozelos,  dobrou a esquina em direção à sua casa com a certeza de que o pior havia passado com o término das homenagens fúnebres e que sua vida se multiplicava amaldiçoadamente nova à sua frente, quando avistou o muro amarelo envelhecido que principiava a descascar, tão familiar e tão estranho para sua mente alquebrada. Estancou aprumado sob o sol escaldante sem precisão motora, absorvido numa névoa de solidão que amortizava o suor que escorria por todo o corpo. O calor inclemente transmitia uma indiferença do mundo ao sofrimento que o corroía serenamente.
O passo que o carregou de sua inércia não foi percebido nem desejado, mas seguiu-se de outro e de mais outro, tão insolentes e impudicos quanto o primeiro, e continuaram a suceder-se numa profusão claudicante sustentada pelo indissociável automatismo arraigado por tantos anos percorrendo aquela parca distância.
Quarenta e sete. Quarenta e sete sãos os passos comuns de Eugênio da esquina ao portão, mas dessa vez não conseguiu percorrer o caminho com menos de oitenta, devido ao encurtamento de sua vontade, à ambição de não chegar que o afrontava pungentemente em seu peito. Seus pés aparentavam andar um metro à frente de sua cabeça, que negava a necessidade de voltar àquele que era, há dois dias, o mais prazeroso dos lugares.
Parou diante do portão branco encardido, deslizando as pontas dos dedos da mão pelo muro enquanto se aproximava, procurando sentir que tudo não havia acabado, que a vida ainda insistia do outro lado. Os acontecimentos eram desfocados, e as trivialidades da rotina, que o esperava e que cumpriria ordinariamente com odiosa submissão, um peso muito superior ao que era capaz de suster, mas que manteria por incapacidade de abandoná-lo, pois intestino, e por penitência, convencido de sua culpa pela Ausência imposta pelo imparcial destino.
Passou a chave antiga ouvindo o tilintar do molho e o estalo do trinco, adentrou o território tão conhecido e o reconhecimento trouxe mais solidão, que rasgava seu corpo com a prontidão e permanência do incurável. Não conseguia reconhecer aquilo como dor, era inalcançável dentro de si. Havia perdido tudo, seu único bem, aquilo que dava sentido aos tijolos empilhados e cimentados que formavam sua casa, escondidos por reboco e tinta, mas que estavam lá, mantendo seu lar material de pé.
A solidez das paredes e a funcionalidade dos sistemas orgânicos da construção, a luz acesa a um toque e apagada a outro, repetidas vezes sob o olhar límpido do dono; a água que escorre como magia das torneiras e que desaparece com igual espanto por um buraco arquitetonicamente programado. Tudo isso não fazia sentido nos pensamentos inconclusos da cabeça mutilada pela perda. A um leve toque na mesa de jantar eternamente desfalcada emerge a imagem trêmula de um sorriso que não mais lhe seria oferecido, com os seios da face - suas belas maçãs - lindamente apertados pelos cantos da boca que os comprimiam com o vigor da alegria.
A sensação da esquina invadiu autoritariamente a sala como um intruso familiar, condensando o ar que parecia se transmutar em sólido tornando impossível o esforço de respirar. O vazio e o desamparo, enfim, preencheram as veias de Eugênio, quando observava da porta da cozinha as louças abandonadas sobre a pia e o fogão, amalgamando o real com a imagem embaciada das costas que tantas vezes admirou e que jamais tornariam a estar ali, que seria incapaz de uma vez mais pesar sobre aqueles ombros macios e em movimento pelo esfregar da esponja suas mãos ásperas, mas sempre carinhosas. A pia estava vazia de vida, como seu coração, mas podia sentir a suavidade da pele morena que deixou plantada na terra há menos de uma hora. Saiu da cozinha sem ter entrado, indiferente à sede que o levara até ela.
Voltou a ver sua sala e, daquele ângulo inverso ao de entrada, avistou o sofá, que não combinava com nada, arraigado num ponto do qual se avizinhava a porta da frente, invariavelmente aberta para que se pudesse ampliar o ambiente e o frescor. Sentiu o cheiro tão comum dos cabelos negros que sempre se deitavam ao seu lado enquanto lia uma bobagem importante qualquer, e sua visão se afogou em lágrimas arrependidas pela demasiada atenção dada às letras e menos àquela que sempre o aqueceu com calores e amores silenciosos.
Eugênio sorria de tristeza sob as gotas quentes que o queimavam face abaixo com uma felicidade amarga pelo já vivido, e que esperava um singular retorno da mulher. Viu a vida fluir de seu corpo – a dele e a da esposa – no asfalto fervente, sob olhares estranhos que juravam compaixão, mas que jamais poderiam compreender exatamente de quem dos dois deveria se apiedar.
Sentia o calor dela em seus braços, deitada sobre eles como tantas vezes se deitou no leito que os dois constituíram para viverem eternamente; sentia seu olhar dominado pelo dela, inflamado pelo medo, mas inesperadamente seguro por quem a amparava. Puxou Eugênio pela gola para perto de si, beijou-o resvalando seu lábio salgado e seco, e soprou tepidamente em seu ouvido o último Eu Te Amo, que pareceu aquecer e alastrar-se pela alma bipartida de Eugênio. Afastou-se lentamente como quem desiste e apagou-se como uma vela no instante em que a chama finalmente toca a cera derretida na base do pavio.
Sem se notar, acabou por tomar um banho, o primeiro nesse desconhecido mundo só, bebendo água do chuveiro para aquela sede que se viu oprimido, antes, a não saciar. Secou-se mal com a toalha do canto esquerdo, que era a sua, observando a outra que pendia viva sobre sua cabeça.
Tudo o avassalava, tudo o fazia pensar na ausência e maltratava seu corpo e seu espírito. Sentou-se do seu lado da grande cama recostado na cabeceira, abraçou nu os fartos travesseiros que sobravam sobre os lençóis sem disputa, lembrando-se dos dias que havia prometido viver e que não mais poderia cumprir. Murmurou Helena e desabou sobre si, pesado, duro, eterno, umedecendo a intimidade perdida com seus olhos e seu corpo.
Dormiu padecendo infelicidade.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Bolas e Livros

Lancinante, aguda, fina, perene, contida, própria, pública, ululante, consternante e tragicômica.

Nos idos de meu primeiro grau, início dos anos noventa, eu era um garoto que se enxergava Homem e conhecedor das verdades absolutas, desdenhando da complexidade da vida e resolvendo as questões filosóficas da humanidade com breves, rasos e levianos argumentos, ostentando orgulhosamente toda a certeza que a ignorância inconsciente traz consigo bem junto ao corpo, ou seja, eu era absolutamente normal.

Meu único ponto de destaque dos outros meninos, todos cheios de si por padrão, era estar numa posição privilegiada na turma: eu era o goleiro do time. Privilegiada porque você é o primeiro ou um dos primeiros a ser escolhido; porque os amigos o respeitam pela singularidade e dependência da posição; porque muitas das meninas adolescentes se interessam pelo que está fora da ordem, pelo diferente, pelo extravagante, pelo não usual. Era minha alta patente.

Foi numa aula de educação física excepcional na quadra coberta, pois parecia chover torrencialmente no mundo inteiro, que jogávamos futebol de salão e eu me destacava debaixo de minha baliza, quando Sérgio, um repetente contumaz, dois anos mais velho que a maioria — quando nessa idade faz toda a diferença — veio quase escondido pelo canto esquerdo. Sem jeito, pois não entendia nada de bola, mas robusto, o que me fez ser despretensioso e mesmo desdenhoso com o lance e já imaginando os olhos das meninas na arquibancada atrás de mim, Sérgio bateu de canhota com aquele eterno desequilíbrio de quem não é moldado para os esportes — uma bola que pesava cerca de meio quilo e era pequena, compacta, nem quicava se largada da altura do ombro — e me arruinou.

Tudo ficou escuro, um breu. É um segundo no qual nenhum de seus sentidos funcionam, você não enxerga, não ouve, não sente cheiro nem gosto, não fala. De verdade, você nem sente que não está sentido. Uma escuridão total nos isola do mundo. É o plácido momento em que se pensa que morreu. O que infelizmente não é verdade, pois surge o instante seguinte.

De um estado similar ao coma, ao nada, sente-se a existência de cada sinapse nervosa e a condução elétrica de cada impulso, transmitindo sua descarga reiteradamente para seu processador central de forma aguda e cruel; agora, você é um hipersensitivo, ouve o silêncio daqueles que estão por perto e absorve a consternação daquelas que nem sabem o que esse momento significa de fato, percebe a aproximação de vultos, a formação da roda de cabeças sem corpos sobre o seu corpo caído e turvadas pelas lágrimas, que, em nome da honra, jamais poderão rolar. Olha-se a todos e não reconhece ninguém. Fecha-se os olhos.

É fina, embora intensa, rasga a pessoa como um parto para dentro, que estica-se toda no chão numa tentativa cômica de estirar a dor, de anestesiar pela contorção. Estoicismo e cinismo puros são impossíveis nessas horas, pois ninguém passa indiferente por esse alheio sofrimento, nem está tão desvinculado do esquema social que não se sinta aflito, abatido e condoído pelo cidadão que nem geme.

Os momentos se sucedem, alguém pega suas pernas e as comprime contra o corpo, empurrando-as pelas canelas. A extensão não resolve, a compressão piora. A crueldade da relação adolescente faz-se perceber quando os amigos compreendem que ninguém ali vai morrer, e os sorrisos surgem nos cantos dos lábios, tomam as bocas inteiras, que vão se abrindo para emitir risadas que aumentam gradativamente o tom até atingir o nível das gargalhadas. E você lá, impotente, indefeso, cachorro morto para o pontapé do escárnio público, que o chuta afinal.

Cigana, a dor excede o impacto, desloca-se para cima, atinge aquele ponto sobre o qual sua barriga irá cair quando tiver os inatingíveis quarenta anos e for um velho. Pensa que vai vomitar, e continua segurando as lágrimas dentro dos olhos, obedecendo o código moral dos jovens cavaleiros. De forma surpreendente, a essa altura, você sente que ainda respira, e o mundo distorcido vai ganhando forma. Vê, inclusive, que o cara que pressiona suas canelas é o sorridente professor, que as risadas estridentes são das meninas atrás, ou na frente, ou ao lado; não se sabe mais em que orientação está. O sentimento é de que aquilo tudo vai durar para sempre, ou o sempre irá estagnar-se naquele momento, e o Tempo não continuará a fluir em sua perene efemeridade. Quanto se passou?, dez segundos?, meia hora?

A cada momento parece que recebe uma nova bolada, que, inclusive, ficou encaixada entre suas pernas e caiu junto com sua consciência, estatelada no chão, entre a trave e a linha de fundo. Seus descendentes devidamente guardados na bolsa, estão ruborizados, mas não mais que você, o patriarca. À medida que o mundo vai retomando suas cores, a vergonha vai dividindo espaço com as cólicas menstruais que o acometem raivosamente, as facadas seriais na linha da cintura que teimam em subir procurando o pescoço.

Em algum momento a gente fica de pé, ou nos levantam, caminha encurvado com passos enfermos, como se estivesse todo cagado, até o banco de reservas, senta um pouco de lado e consegue sorrir débil para o comentário que não entendeu de seu melhor amigo, tentando demonstrar que não foi tão grave e que não é para tanto alarde e gozação aquele evento funesto, lúgubre, nefando. Um sorriso preso, contido, nada mais. Um esgar.

Respira, respira, respira. O professor encerra a aula ali mesmo ressaltando sua desmoralização. Você pega a mochila cabisbaixo, coloca nas costas e vai para o ponto de ônibus, lentamente.

Uma bolada no saco por um colega incapaz nos torna mais prudentes e mais cientes da fragilidade e do acaso, irmãos que se encontram de quando em vez para zombar da portentosa humanidade.


No recreio seco do dia seguinte, todos correm até a quadra para garantir o primeiro jogo, eu não. Nunca corri porque tinha a certeza de ser escolhido. Não corri de novo. Chegava perto da quadra quando gritaram meu nome. Acenei com o objeto em minha mão evidenciando que era dele a prioridade e estampando com surpresa os rostos diários. Peguei meu livro novo, sentei num banco de concreto longe das quadras e abri na primeira página.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Meu Nome não é Jano

Não vou retratar aqui minhas más condutas, meus entorpecentes ou meus erros, nenhum segredo recôndito ou satisfazer qualquer curiosidade sórdida do desconhecido. O título é alusão a exatamente aquilo que parece ser, no entanto uma referência meramente tangencial, fonética poderia dizer, com mais afinidade com o relato que inicio que com a obra da qual extraí.
A questão principal é exatamente a titulada: meu nome não é Jano. Jano é um apelido carinhoso da redução de meu nome oficial, o qual é muito comum, está na boca de todos e de qualquer um, mas não para se chamar uma pessoa.
Minha mãe, quando grávida de mim, já me amava tanto que nunca se importou por qual seria o nome da criança. Não fazia diferença. Ela somente desejava com verdadeira paixão, mais que tudo na vida, que aquilo saísse de dentro dela, que a deixasse retornar à cintura cinquenta e poucos o mais breve possível; que não precisasse ir ao banheiro a toda hora para mijar apenas, pois a eterna prisão de ventre já havia arrebentado todas as hemorroidas possíveis de existir em um só buraco; nem se sentir como se tivesse gazes ou devorado uma vaca sozinha; que acabasse a sensação de ter comido um bicho vivo que não teve a decência de morrer após ser engolido e que tentava se libertar a todo momento esticando os membros aleatoriamente em seu ventre, pressionando ainda mais suas entranhas.
Para ganhar definitivamente a simpatia da nobre senhora de vinte e poucos anos que seria minha mãe para sempre, tive a esclarecida ideia de invadi-la, sem sua anuência, em abril ou maio, o que a matemática simples revela que o auge de seu sofrimento coincidiu com o verão tropical úmido. Nessa época do ano há dias com sensação térmica de cinquenta graus e umidade acima de oitenta e cinco por cento. Isso significa roupas banhadas de suor e coladas na pele para as pessoas comuns, que não carregam outro ser humano compulsoriamente há sete meses ou mais. Ela me adorava!
Eram os anos setenta. Ar condicionado era um artigo de luxo e luxo era um artigo desconhecido em casa de mamãe, antes mesmo de Jano, a (altíssima) despesa extra, dar suas caras através de sua vagina. E essa foi a cereja do bolo. Vim um pouco antes do programado pelo médico e pela astróloga – não sei ainda em quem mamãe confiava mais, mas acho que as estrelas estavam um pouquinho à frente da medicina –, e rasguei a bela menina como nenhum amante, por mais talento que apresentasse, poderia ter feito, antes ou depois de mim.
Minha mãe não me odiava, ela era indiferente, sem expressão afetiva. Cumpriu formalmente todo seu papel, com poucas reclamações. Hoje acho que teria lidado melhor com a rejeição explícita que com a sub-reptícia indiferença. Contra-agir é muito mais fácil e claro em face de outra ação, mas não vejo muito que fazer diante do nada, do não-feito. A ofensa pode ser aniquilada por diversas respostas, verbais, físicas, jurídicas, morais, imorais etc. Você pode não ser bem sucedido na resposta, mas ela foi dada. Como reclamar da conduta dos pais quando a comida está sempre em cima da mesa, você está na escola e não é cobrado, não é surrado por qualquer coisa, pode, enfim, ir e vir com mínimos questionamentos? Não tenho resposta. Sei que nada sei sobre isso além do que aglutinei involuntariamente em mim todos esses anos. Sei de mim, apenas.
Todos a consideram uma boa mãe, e eu não posso não concordar. Estou vivo, inteiro, íntegro segundo os parâmetros sociais que fui obrigado a seguir e acatar, não feio, embora ela fosse linda, tenho até nível superior que me permitiu conquistar um emprego público de grau mediano que me sustenta com um pouco mais de luxo, algo acima do básico, que ela poderia ter na mesma época de vida que enfrento hoje.
Afinal, a gravidez mesmo é que foi sofrida, um martírio. Embora esse desagrado fosse acontecer novamente em sua vida. Ouvi algumas vezes sobre as dores que ela sentiu para me “cuspir” e o alívio que meu choro causou. Mais alívio que felicidade, embora me vanglorie da certeza de que havia felicidade em algum grau, mitigada um pouco mais pela ignóbil mão do arquiteto genital que remendava sua vagina com agulha e linha. Desconheço exatamente qual a medida de simultaneidade desses acontecimentos, mas todos eles tinham um motivo comum, um gatilho: eu.
Meu pai era mais simples. Tinha o afastamento masculino de quem foi criado nos anos 50 e 60, sendo divertido em diversas ocasiões. Por isso mesmo, muito mais perigoso. Enquanto mamãe era a Justiça, analisava os erros e decidia as penas, papai era o Carcereiro, ou o Carrasco, dependendo da qualidade da pena: privação de liberdade ou corporal, junto com o discurso de ilibação da moral do condenado: eu de novo.
À época de meu nascimento, havia uma música que o cantor, e quem cantava, dizia que também iria reclamar disso e daquilo, que todo mundo agora reclamava, mas que ele, o cantor-autor se proclamava como o primeiro reclamante e, fatalmente para mim, dizia que já havia passado janeiro, mas se todos gostavam dele, o cantor, ele iria voltar. Meu pai logo sacou que janeiro era a referência a ter sido o primeiro em alguma coisa e achou o máximo. Falou com minha mãe que aceitou tão sem protestos quanto sem euforia, quase dando de ombros, abanando-se de calor, segurando uma barriga que não parecia ser sua. Ninguém reclamou.
Com o documento de nascido vivo, fui registrado no cartório mais próximo como Janeiro Alvarez Pires de Paiva. Isso aí. Era eu o primogênito desse casal casual, de todo desinteressado de tudo. O primeiro. Eu era Janeiro. Nascido em Janeiro. O infeliz e apático funcionário do cartório – não consigo vislumbrar instituição mais isolada das pessoas que um cartório, talvez um hospital seja – sequer deve ter se coçado para protestar contra um nome tão deslocado da normalidade, do comum. Simplesmente datilografou meu registro sem perceber que traçava as primeiras linhas do futuro de uma pessoa. Mal traçadas linhas, ressalto. Também não era culpa dele, não tinha nada a ver com as excentricidades alheias e, portanto, menos ainda motivos para se envolver. À quem não sabe, o oficial do cartório pode recusar registro e abrir procedimento ao juiz caso entenda que o nome a ser registrado possa causar constrangimento grave à pessoa. Não era o meu caso. Na visão desinteressada dele, ao menos.
Eu também iria reclamar. Repetidas vezes. Uma reclamação vazia, quase sempre muda, e invariavelmente inócua. Chamar-se Janeiro era motivo de risadinhas, mas estas só vinham depois que entendiam meu nome. Eram dois constrangimentos certos: fazer-me entender e suportar o depois de ser entendido, que poderia ser, nas pessoas educadas, um silêncio suave somado a um quase inaudível “ah, tá”. Ninguém acredita de primeira que você se chama Janeiro. Nunca tive desprendimento suficiente para deixar prá lá, simplesmente não me importar e sorrir diante da indiscrição do próximo.
Felizmente, não demorou a reduzirem um nome de três sílabas para duas, à guisa de carinho, e nascia assim Jano. O que resolveu pouco, pois a cultura de meu pai achou por bem me informar que Jano era um deus romano a quem se atribuíam os inícios, associado a portas, entradas e saídas, decisões e escolhas e que, por isso, foi referência para nomear o mês que me nomeia. Eu era Janeiro duas vezes.
(Portas! Não poderia ser o deus da guerra, dos mares, do céu, da terra, do fogo ou do ar?!)
Ainda tentei, porcamente, convencer e vencer meus colegas e amigos, principalmente os novos e os falsos, do orgulho que tinha por se chamado como um deus, mas esse deus era tão desconhecido e fraco na hierarquia olímpica que nunca obtive sucesso. Nem eu concordava. Logo desisti.
Aceitaria de bom grado, já que estamos tão próximos dos deuses, ser chamado de Hermes, nome grego de Mercúrio, o primeiro planeta do Sistema Solar. Primeiro, eu disse. Idênticos motivos. Pode ser que penso assim porque não me chamo Hermes, pois é muito provável que se assim fosse pediria para ser João ou José ou Rodrigo, como se chama meu irmão. Sim, tenho um irmão e logo estará em pauta. Mas meu nome é Janeiro e essa era mais uma forma para expandir meu lamento.
Pensei que quando me tornasse uma pessoa importante e madura, todos me chamariam de senhor Paiva ou doutor Pires ou Lorde Alvarez, nas fantasias mais felizes. Tentei forçar essa, mas nunca pegou, muito porque não sou médico nem advogado para ser chamado de doutor, ainda não tenho idade para receber o tratamento irremediável de senhor, menos ainda me tornei um nobre medieval para ser Lorde de Qualquer Gleba. Ao conhecerem meu nome de batismo, mesmo sem jamais ter sido batizado em qualquer religião, ninguém resistia a insistir sobre ele, muitas vezes me atribuindo alcunha de Jano pensando que estavam sendo originais.
Esse pequeníssimo engano era um dos poucos que me faziam feliz, pois poderia retrucar que todos já me chamam assim, deixando a pessoa levemente desconcertada por ter sido privada de sua pretensa agudeza de espírito. Logo era esquecida, essa minha módica vitória. Eu a apreciava ainda assim.

Daí, aceitei o Jano definitivamente como aceitei muitas outras coisas e acontecimentos em minha vida: simplesmente porque era “menos pior” que a alternativa. É um reiterado laissez faire, laissez aller, laissez passer em relação ao resto do mundo –– os outros seis bilhões de vivos.