domingo, 13 de julho de 2014

A Esquina

Caminhava por sua via calçada absorto do mundo à sua volta, sem ideia exata se ele abandonava a realidade ou se ela o expulsava. Carros passavam freneticamente sobre o asfalto antinatural desviando por poucos centímetros daqueles que atendiam ao limite de velocidade, sempre deixando um lastro sonoro com seus agudos e mal afinados berrantes. Transeuntes graciosamente ignotos o cortavam nos dois sentidos, sem olhares, sem pensamentos, sem história, com fios acoplados às orelhas. Caminhava por sua via em busca de seu destino certo, no automatismo diário de sua peregrinação consentida, exercendo sua liberdade de ir e vir do trabalho ressentido.
Passara anos a fio por aqueles mesmos escombros a que chamavam de calçada, naquele mesmo horário que convencionaram como cedo, com aqueles mesmos seres humanos que se escondiam como pedestres, para o mesmo endereço que minimizavam como obrigação. Cumprira aquele trecho de menos de cem metros de tortos concretos infinitas vezes e, uma vez mais, aproximava-se da próxima rua.
Com a cabeça um tanto baixa, alcançando impassível o cruzamento, uma luz mais intensa pousou tepidamente em sua face. A fileira de torres elevadas ombro a ombro chegara ao fim, repentinamente, como todos os dias antes deste, e o sol insistente o encontrou. Ele desviou seu olhar morto do chão em direção àquela luz estranha que o despertava. Avistou mais que a luz, avistou uma imensurável dimensão de pessoas e que vinham ao seu encontro sem cumprimentos, e outras mais que se afastavam sem despedidas.
O fluxo de seus passos coagulou como sangue esvaído. Imóvel, permaneceu observando quem vinha e quem ia. Seguiu a linha da calçada que encontrava com a sua tornando-as uma e notou, não com a mente, mas em seu íntimo, que ela não tinha fim. Como magia, seres humanos surgiam sem razão conhecida dançando seus pés sobre ela e se aproximavam numa marcha zumbi. Olhou na direção oposta e o mesmo fenômeno ocorria no outro encontro de calçadas, com a diferença de que não havia ninguém parado por lá. Dois caminhos se uniam depois de conduzir pessoas desde o infinito, desaguando-as ali, ao mesmo tempo.
À frente, a rota que deveria seguir: mais duas intercessões de pedras portuguesas mal ajambradas, separadas dele pelo asfalto. O sinal finalmente ficara verde e todos pararam por ali como ele, mas não enxergavam o que ele finalmente era capaz. Os dois encontros de caminhos se enfrentavam. As pessoas face a face, lado a lado como os prédios atrás, não se percebiam. Olhavam as outras paradas na margem oposta da rua, mas não as notavam. De manhã cedinho ninguém se conhecia.
O cruzamento de carros era envolvido por oito caminhos de homens e que se encontravam dois a dois sem continuidade. Mais, significava oito caminhos que se abriam, a possibilidade de seguir adiante ou de tornar a qualquer dos lados, ou, quem sabe, ousadamente, voltar. Opções não notadas, inconscientemente desejadas, mas rejeitadas já no pré-natal pelo pavor do conflito da mudança com a necessidade.
O ex-caminhante agora estava preso na consciência de sua liberdade de pensamento e de seu dever pessoal e social de trabalhar e arrecadar dinheiro para si, sua família e a comunidade de seres humanos sem laços comuns e que não se olham verdadeiramente por toda uma vida, mirando ordinariamente o piso como numa viagem em um elevador lotado de “iguais”. A verdade falsa de uma escolha retalhada passava a atormentá-lo diante das possibilidades físicas de consumá-la.
A Esquina abria o horizonte que se apresentava assustadoramente como uma volta completa em seu corpo. Era como estar no cume de uma montanha inimaginavelmente alta sem possibilidades de descer, pois todos os lados, a poucos centímetros de seus pés, iniciava uma falésia sem apoios. Qualquer passo resultaria em uma queda, mas sem cair não tinha como saber o que havia lá embaixo, nem se a água era fria ou quente, nem mesmo se sobreviveria à queda.
A Esquina revelou o vazio em sua mente e a não percepção cotidiana do mundo à sua volta, das mínimas às grandiosas coisas. Todos seguiam sem um verdadeiro porquê, apenas cumpriam com as parcas obrigações, esperando o momento de serem substituídos sem saudade por outros desinteressados. Nunca se sentira tão só.
 Assustou-se com mais um berrante de aço e de repente a impressão foi se desvanecendo sem esforço. Não percebia exatamente como aqueles pensamentos o acometeram e como se ligaram. A efemeridade de um sonho que se enfraquece assim que acordamos, sólido e etéreo ao mesmo tempo.

Com um sorriso desorientado atravessou correndo entre motores a via rumo à indiferente esquina que há muito o esperava, e à continuidade de sua vida sem alcance, já esquecido de quem era e de toda a humanidade.

sábado, 26 de abril de 2014

Um Quarto de Hospital

            Dionísio caminhava pela Rua das Marrecas, no Centro do Rio, após lauta refeição sem balança com direito a dois pedaços de carne. Gabava-se de sua esperteza aos dois amigos “otários” por ter realizado a proeza de esconder um terceiro pedaço do animal abatido por baixo do arroz e do feijão, locupletando seu estômago com a proteína contrabandeada. Caminhava como um pêndulo glutão, balançando num ritmo sonolento de leste a oeste enquanto voltava para o trabalho, estabelecido há mais de oito anos na Rua Evaristo da Veiga, sem nunca ter se dado conta de que este se tratava de uma pessoa há muito morta, esquecida por todos e por qualquer um, inclusive Dionísio, que jamais se alertara que aquele nome já fora envolvido por carne e osso e que contava uma história, com uma importância suficientemente reverenciada para nomear aquele pequeno trecho de via pública.
            Na rua honrada ao finado político está localizado o quartel-general da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que de imponente possui tão somente o título, pois decai com o tempo na mesma medida que a pele alva de uma idosa descuidada nessa terra ensolarada. Pois bem, repentinamente, todos os pensamentos, próprios e alheios, cessam em uníssono com os estampidos que são ouvidos de dentro do forte enrugado, levando os três amigos a erguerem as mãos às têmporas, dando aquela semiagachada inútil para salvar a própria vida e que apenas registra o susto e o medo. Em alta velocidade, arranca uma viatura policial atirando para dentro do recinto militar, seguida de destemidos e irresponsáveis fardados que contra-atiravam os insultos de fogo.
            Dionísio assistia com uma expressão de maravilhado e assustado, ou seja, completamente abestalhado e embasbacado, não necessariamente nesta ordem, diante da situação inusitada, enquanto os companheiros se espremiam no muro, permanecendo aglutinados atrás do bem alimentado companheiro. Sentiu um impacto no peito como um murro de pugilista, embora nunca tenha entrado num ringue de boxe, e uma intensa queimação por dentro, num segundo imaginando que estava cedo ainda para a velha azia de cada dia. Notou que o céu azul do janeiro fervilhante parecia cair em sua direção. Estava de costas na calçada imunda, de olhos fortemente cerrados pelo pavor da queda do firmamento, quando ouviu seu nome gritado por Dantas, um dos otários das duas carnes. Não entendeu o alarme até reconhecer novamente o ardor inicial e a mancha rubra tomando conta da camisa de linho branca nova. Ardózia iria matá-lo, foi o que pôde pensar antes de tudo escurecer.
            Acordou no hospital, sem que houvesse vislumbrado túneis de luzes para encaminhá-lo ao divino, nem sombras vorazes para arrastá-lo ao sofrimento eterno. Menos ainda teve a oportunidade de ver-se de cima ou de tentar retornar ao corpo abandonado. Simplesmente escureceu e clareou, de maneira idêntica ao fenômeno que ocorria em frente à televisão nas quartas-feiras à noite durante os primeiros quinze minutos da transmissão do futebol: de repente tudo se tornava uma manhã de quinta, como aquela, aliás.
            Estava enfaixado do tórax até o ombro, no dia seguinte, a tão esperada sexta, com um estreito tubinho penetrando sua pele nem morena nem branca, estirado num leito cor de azul-sem-graça com branco-insosso, que combinava perfeitamente com a roupagem e os rostos carentes de vida das enfermeiras. Soube o que acontecera pela voz monocórdia e lúgubre de Maria da Anunciação, que cumpria seu turno com a mesma emoção de um ponteiro de relógio atrasado. O tiro que o atingiu havia sido desviado do coração pela aliança de ouro que carregava protegida no bolso da camisa alva impecável. Agradeceu a Deus, embora não tenha vindo ter com ele durante seu desfalecimento, e lembrou-se de Ardózia, dos trinta e um anos juntos, dos dois filhos já crescidos e dos falecidos pais, que também não deram as caras quando apagou.
            Ardózia entrou de mansinho, como era seu jeito, mas mal conseguiu se aproximar da cama, quando dois repórteres invadiram o recinto com microfone e gravador em riste, perguntando simultaneamente questões distintas, que cegaram o entendimento de Dionísio com muito mais eficiência que os flashes de paparazzis sobre as estrelas de cinema. O paciente sem paciência pediu calma aos dois, totalmente surpreso e meio contente, no exato momento que uma câmera de TV e um fotógrafo arrastaram a porta, ecoando o estalo dela quando se chocou contra a parede por todo o quarto, forçando a mola que a mantinha fechada.
            Finalmente a disputa entre os profissionais havia se encerrado, podendo a entrevista com a “vítima do despreparo da polícia”, título que o acompanharia durante os próximos cinco dias de fama, até outra vítima tomar seu lugar. Antes de ser sucedido em seu trono, Dionísio contou, com voz impostada, que foi capaz de perceber todo o ocorrido: os sons de disparos iniciais, que reconheceu como calibre .38; o desvio pela contramão da viatura; a posição periclitante de seus apavorados colegas com a saída dos fardados do quartel aos tiros. Disse que não pensou duas vezes em se colocar à frente dos homens que o acompanhava, querendo transmitir tranquilidade aos mesmos, mas que nunca esperaria aquele petardo em sua direção. Um herói! Um herói épico!
            Diversas perguntas eram feitas e respondidas com riqueza de detalhes, mas não foi capaz de reconhecer os ousados ladrões de armas, como veio a saber o motivo da ação. Ardózia havia se sentado placidamente no sofazinho gelado do quarto, olhando emotivamente para o Dionísio e para os repórteres, enquanto cada um falava. A conversa parou um instante, quando uma chamada na televisão 14 polegadas do quarto apresentou a fachada do hospital, e o ferido pediu para que o deixassem ouvir. Aumentou o som com o controle remoto que exigira uma caução de cinquenta pratas, provavelmente providenciada por um de seus filhos. A história do quarto foi repetida na tela, informando que não há pistas dos ladrões, acrescentando que o Sr. Dionísio Silva de Lima encontrava-se em recuperação. Foi colocada num ar uma diagramação do ocorrido mal elaborada por computador, apresentando um retângulo saindo às pressas do quartel, outros bonequinhos saindo logo após, e, finalmente, linhas tracejadas atravessando a rua em direção a um bonequinho palito amarelo na outra calçada. Era Dionísio. Retornando ao repórter de campo, uma foto dele com a camisa do Vasco foi colocada no canto superior direito da tela, com seu nome sob ela. Orgulhoso, Dionísio ampliou mais o sorriso no momento em que se comentou que ele havia salvado a vida de dois amigos de longa data com a sua corajosa atitude de se manter à frente deles.
            Mas a ênfase do repórter ganhou ritmo de grande acontecimento ao relembrar o povo curioso que a morte de Seu Dionísio foi adiada pelo desvio no anel matrimonial, inutilizado no bolso de linho. À menção do símbolo de seu casamento, olhou ternamente para a esposa, que retribuiu com seu contumaz sorriso curto e macio, que transmitia a tranquilidade necessária que mantinha Dionísio em paz nos momentos das maiores dificuldades da família. Chamou-a ao leito e agarrou as pequenas mãos femininas com as seus ilesos dedos de unhas bem-feitas. Aos olhos dos repórteres, derramou lágrimas que brilhavam sob os reflexos da luz branca que abundava o ambiente a cada foto, declarava seu amor vigiado pelo microfone e pelo gravador que captavam a intimidade desleixada. Ardózia sorria tenra, cativante, mas sem emitir uma palavra. Desferiu um beijo suave e lento na bochecha do marido, a foto de capa, ou da página onze, dependeria do editor da página policial.
            No instante em que a serena Ardózia afastava seu rosto do do marido para alcançar a outra bochecha, adentraram dois homens: o primeiro de farda de gala, embora Dionísio não fosse capaz de notar a diferença da comum e a representatividade das vestes para ocasiões oficiais – apenas a achou bonita; o segundo de terno límpido, que parecia ser escovado a cada 15 minutos, gravata rosa e camisa branca, que lembrava a sua própria camisa, destruída na guerra da qual era sobrevivente. Assim que se sentia: um soldado ferido em nome da nação. Solenemente, o senhor fardado elaborou firme continência ao civil baleado, enunciando em seguida discurso de perdão em nome da Polícia Militar, devotando a coragem e a bravura demonstradas pelo transeunte desafortunado, informando que seria condecorado honorariamente pela demonstração de sacrifício tão louvável e raro nos dias de hoje, e que gostaria que houvesse mais homens como eles representando as honradas divisas da corporação. Firmou os pés, fez nova continência, afastando-se dois passos para o engravatado falar.
            Anunciou-se com pompa solitária o Subsecretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, repetiu o contexto do discurso de seu antecessor, acrescentando palavras de convalescença e elogios, por vezes direcionando o olhar para Ardózia, que observava tudo um pouco enfastiada e muito desconfiada da representação daquela dupla de bonecos. Por fim, declarou a obrigação honrosa do Estado em arcar com todas as despesas médicas e hospitalares, bem como de toda medicação e tratamento posterior que se fizesse necessário depois da alta à plena recuperação do cidadão. Tudo devidamente registrado pelos profissionais da imprensa presentes.
            Dionísio não cabia em si de tanto orgulho, quase sendo capaz de abrir os pontos de sua operação com uma estufada de peito.
            Finalmente todos os deixaram com palavras ralas e céleres de adeus, entoadas com notas de alívio pelo fim daquela obrigação. Pôde, enfim, ficar a sós com sua esposa. Perguntou sobre as crianças. Ardózia ciciou que Ângelo e Fernando passaram ali toda a tarde, noite e madrugada anteriores, saindo para trabalhar assim que foi confirmada a notícia de que seu pai estava bem, fora de risco com o sucesso da cirurgia.
Mais uma vez foram interrompidos pela repercussão do caso, pois as duas autoridades que estiveram presentes em seu quarto de hospital, agora davam entrevistas muito mais animadas ao vivo para o telejornal, este sim o evento para o qual haviam tão especialmente se vestido. Ouviram ambos num silêncio solidário as mesmas palavras que foram lançadas logo antes contra as paredes cor verde-cansado, emendadas pela promessa de Justiça à população, pois a captura dos criminosos significaria uma resposta à bandidagem e uma demonstração de força ao povo carioca, recuperando o respeito das instituições públicas há muito desacreditadas.
Ao final da reportagem, Ardózia apertou a mão do marido e reclinou seu corpo na direção do acamado. Dionísio apreciou o movimento da esposa a se aproximar, os cabelos tocando o pescoço e o queixo num contato rarefeito e delicioso, sentindo a voz quente e naturalmente aveludada – que o fazia recordar certo dia de maio de 1982 – bafejar em seu ouvido já arrepiado, quase sentindo tesão:
“O que sua aliança fazia no bolso?”

O arrepio intensificou-se, mas a leve ereção murchou. Fechou os olhos pensando em Deus, procurando desesperadamente pelo caminho de luz e de salvação, ou mesmo, quem sabe, pelas sombras vorazes do Outro. Porém, ambos faltaram-lhe uma vez mais.

sábado, 8 de março de 2014

Clausura II - O Trabalho

Era dinheiro na veia. Estava ligado à máquina. Não podia me desvencilhar. Uma monetariodiálise permanente.
Sentado horas a fio, dia após dia, entre uma cadeira e uma mesa, com aquela tela brilhante assomando sobre mim, ostentando seu irônico nome de “computador pessoal”, engolindo numa bocada única Vontade e Tempo.
Incapaz de me mover pouco mais que alguns centímetros em toda a Rosa dos Ventos, sentia meus braços encurtados sobre aquela planície de letras que insere informações na luz que me hipnotiza, sob as ordens indicadoras de meus hábeis dedos. Mesmo essa pequena liberdade me é tomada, pois nem os lépidos movimentos que pratico sobre os hieróglifos modernos, romanos e arábicos, são empreendidos livremente. Há uma ordem estabelecida e um objetivo a ser alcançado, e qualquer movimento em falso, estranho às condições pré-estabelecidas, pode e será considerado uma afronta às determinações superiores. Cada ponto que encerro é verificado e gravado. Não tenho a possibilidade de me esquivar. É um direito me olhar, me avaliar e decidir sobre mim o que é melhor ser decidido: meu próximo passo.
É um temor a possibilidade de um engano humano, como se teme a óbvia certeza do toque num fio desencapado. Leves choques em pequenas admoestações que perseguem toda uma vida e se acumulam sem cuidado ou organização, e que, de repente, extravasa de seu quarto escuro e nos apresenta à verdade de nossa clausura.
Minhas pernas estão desaparecidas sob a mesa que suporta todo o peso material do trabalho e sequer me recordo da cor de minhas calças. Fremem invariavelmente durante toda a duração de meu cárcere diário, supostamente desejado. Alguns denominaram esse agito como “mania”, outros como “nervosismo” ou “ansiedade”, e houve aqueles que apelidaram de “dedicação”.
Supostamente desejado. Um vínculo perene com o salário e a necessidade de subsistência da única maneira conhecida, mantêm meu corpo invisivelmente atado nesse cubículo sem luta, cercado no imenso esquife de pessoas vivas e sem mentes.
Tudo está condicionado à doação integral de uma alma à produção social, à contribuição individual para o crescimento do povo, da economia, da nação. O sacrifício de uma vida pelo método mais cruel: a mal vivência, os fazeres incompletos, os quereres reprimidos, os pequenos gozos mendigados.
Ainda não consigo me mexer. Continuo produzindo, respondendo tecnicamente às questões, rodeado por pessoas que jamais se interessaram em passar um minuto comigo, que nunca desejaram saber quem sou eu ou o que eu penso que sou. É o compartilhamento circunstancial e forçado das vidas vendidas por uma quantia que não compra a alforria, pois o alforriado não permanece nem foge, passa a viver.
São relações delineadas por patentes que tornam um homem melhor que outro, distribuídas por critérios objetivos eivados de subjetividade. Mesmo com o comunismo da imobilidade forçada, do espaço reduzido, do caminho limitado, aqui sou inferior, delicadamente não chamado de subordinado ou subalterno.
Rio sem sabor das pessoas que dizem que temos escolha, mas esta sempre se reduz a uma outra sujeição, outra mesa, outro caixão. Alternar de correntes ou de cela não nos torna prisioneiros diferentes. Morrer de fome e de desamparo físico não é uma escolha, é despedir-se de si. Penso na escrita, mas trabalhar com o que se ama é temperá-lo em excesso com a porção mensal de sal, pois o torna imposto, matando a essência de qualquer espécie de amor. Neste caso, morre-se duas vezes simultaneamente.
Diante das opções vedadas, está ficando difícil respirar. Sinto menos as dores e a claustrofobia adormece em companhia de minha vontade. O mundo se distancia de minha percepção como se somente aquela luz fizesse sentido, cedendo ao feitiço do fogo sobre a mariposa. Nos arredores, há elogios mentais à minha concentração no trabalho, nos objetivos da empresa, nos resultados que não me importam e que não tornam para mim. Sou exemplar. Procuro erguer a cabeça e desmenti-los, mas não tenho nenhum direito de me levantar, e minhas escolhas estão oferecidas a algum deus que não me socorre. Remo nas galeras sob o ritmo das moedas tilintando que não posso renunciar, açoitado por falsos elogios que sou obrigado a ouvir.
Há outros de mim, afirmo numa certeza verde de esperança. No entanto, o que vejo de soslaio é um cemitério de cadáveres sentados, levemente inclinados em direção à luz, cotovelos juntos ao corpo, como numa posição verticalmente fetal. Todos sistematicamente colocados lado a lado, enfileirados, em covas altas, sete palmos acima da terra, enterrados em suas necessidades com uma lápide plástica pendurada no pescoço, nominada e numerada, sem a qual não se sabe quem se é.
Todo trabalho é escravo.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Clausura

Quando eu acordei a primeira vez, imaginei que tinha ficado cego. Sabia que meus olhos estavam abertos, mas só via escuridão. Imediatamente quis me levantar em desespero, mas bati com a cabeça em alguma coisa. Foi uma batida fraca, pois o objeto estava bem próximo a ela. Quis trazer minha mão à testa para esfregar o local da pancada, mas ela se prendeu numa lateral rígida, resvalou no teto e ficou contida pelo cotovelo que se prendia em V nas bordas. Tentei sair para os lados, me virando, mas mal consegui dobrar os joelhos.
Isso foi há algum tempo, antes de meu primeiro desmaio. Não sei quanto se passou. No escuro imóvel não dá para contar. Todas as nossas referências de vida deixam de existir, exceto você mesmo. Largura, comprimento, tempo, espaço, tudo, nada, certo, errado, cima, baixo, verdade, mentira, minutos, horas, sabedoria, ignorância, bondade, maldade. Só resta sua mente e o calor. O ar entra quente em seu corpo e por imposição, denso, preenchendo seus pulmões com odor de terra, pesado, quase sólido, sufocante.
Claro, pensa-se nisso tudo depois de gritar até a dor o emudecer, socar e se debater até os dedos se quebrarem, espernear até não sentir mais os pés, suar banhando o leito, e Chorar feito uma pequena criança, com lágrimas saindo em profusão, acompanhadas pelo ranho que escapa do nariz escorrendo pelo canto do lábio, contornando o pescoço até a nuca, provocando uma sensação que sempre me foi repugnante, exigindo uma limpeza imediata com as costas da mão. Este movimento reflexo natural e mundano é interrompido pela dor dos dedos quebrados tocando ferozmente a madeira. Eu sei que é madeira.
Súbita e inesperadamente lhe abraça uma calmaria maléfica, que se mostra, todavia, ser a precursora do pior dos momentos. Ideal era se quebrar todo ao ponto de cessar a tortura de saber-se ali. Nela, você se enxerga, se percebe, mira com precisão seu destino, raciocina, enfim. A calmaria faz pensar fisicamente no sofrimento, ter consciência dele, e logo se espanta e se desespera exatamente por efeito dessa dose nefasta de consciência, o que o faz quebrar mais um dedo pelo menos. E apago em resposta.
Acordo contra minha vontade com o suor inundando meu corpo, o que prova que estou desgraçadamente vivo. Cinicamente, meus órgãos continuam funcionando, com eficiência indiferente ao meu espírito: respiro, meu coração espalha meu sangue pelo corpo, pisco, salivo, produzo hormônios e inúteis espermatozoides, leucócitos avançam sobre vírus e bactérias — tão vivos quanto eu — protegendo minha saúde. Acho até que daqui a pouco terei que mijar. Simples assim, como se eu pudesse me levantar até o banheiro, colocar o pau pra fora e molhar a borda da privada como de costume. Penso nisso enquanto choro mais uma vez. Nesta versão, um choro contido, triste, desalentado, como que abandonado. Quando uma merda dá as caras em sua vida, ela vem perna abaixo.
Respiro fundo e tenho uma ideia. Começo a respirar bem rápido para consumir todo o ar que me resta e acabar logo com isso. Inspiro e expiro com tanta avidez que meu cérebro fica hiperventilado. Logo sou tomado por uma tontura causada pelo excesso de Oxigênio e reconheço o vão cansaço da tarefa. Rio grotescamente por estar pleno e meio dopado daquilo que logo me faltará e me extinguirá, e porque me lembro das bolas de aniversário que enchia vigorosamente quando garoto e que provocavam a mesma sensação. Neste momento revejo o rosto de minha Mãe e viro o meu de lado, fechando os olhos, para escondê-lo de vergonha. Cerrar os olhos no breu da morte. Ironia!
Vergonha pela vida que levei diante de tudo que ela esperava de mim. Mas ninguém se encontra como eu por nada. Não leva tiro quem está na missa. Fiz tudo errado. Nem da desculpa de que tentei acertar eu posso me orgulhar. Eu sempre soube que meu caminho era torto. Esperava acabar com uma bala na cabeça, nas costas, explodido dentro de meu carro, submerso de pés acorrentados, sei lá, como em muitos filmes acontece. Nunca imaginei que pouparia o árduo trabalho de meu coveiro. Como sou bom.
Cumpro a experiência do filósofo. Estou aqui, suspenso sob a terra, sem contato com quase todos os meus Sentidos, salvo o tato — a dor. Assim experimento minha Mente como algo separado de mim mesmo; quase posso voar, a não ser pela pequena restrição que me aflige. Eu me vejo. Não fora do corpo, mas ao largo de minha consciência cotidiana invariavelmente arraigada ao Normal. Uma liberdade tão ampla e vaga quanto insólita toma conta de mim, da sobra de mim. Não há nada material aqui embaixo, nenhuma barreira sensorial. Eu me vejo, assim, moralmente, e não gosto de quem sou, julgo. Já não morria de amores antes, agora, sem luz e sem fuga, não me orgulho intensa e imparcialmente daquilo que me tornei e como me tornei.
Observo minha vida diante da morte e Grito, ou imagino gritar. O que restou de minha voz, não me parece real, e sim de outro. Já não posso afirmar se ela realmente sai pela minha boca ou se apenas repercute em meu cérebro inebriado, uma ilusão imposta por uma mente em Desconstrução. As certezas mais próximas vão me deixando, espargindo a realidade em perdigotos insubstanciais. Calor e suor são as únicas verdades que me mantêm em contato com a concretude da vida. Sempre odiei a sensação do suor escorrendo a conta-gotas sobre a pele e estaria fadado a me afogar nele se não fosse me afogar, antes, em dióxido de carbono.
Esses pensamentos me dão a esperança de que tudo está prestes a terminar, torço com comoção pela chegada de alucinações que me distanciem desta dolorosa imobilidade negra.
Devo ter perdido os sentidos por mais algum tempo. Ou será que apenas pisquei os olhos numa fração de segundo? Nessa minha nova casa, onde desperto com insistência, o Tempo não reside. Sinto que estou vivo há milhares de anos e que ainda viverei outros milênios durante os próximos minutos. Tanto faz. Eu não me pertenço. Mas eu existo… ainda.
Será que eu já morri? Será que minha mente atingiu a escuridão tépida de algum útero inseminado e poderei viver uma vez mais?, uma nova vida? Dedos incrustados de sangue e lancinantes espasmos nas costas inertes me provam que ainda sou eu mesmo, o eu-agora. Sacudo o corpo em desespero por ser eu-ainda.
Mijei. Sinto o cheiro que me traz de volta. Sinal de vida, lamento. Agora parece que minha vida jamais existiu. Todos que conheci e tudo que fiz, as decisões que tomei, soam irreais, fantásticos, como sonhos distorcidos mal contados por outra pessoa de uma era esquecida. Desapareço da mesma forma que a árvore que cede ao tempo e Cai numa floresta obscura e sem testemunhas, sem alguém para ouvir o som da madeira se rompendo e das folhas farfalhando durante a queda, nem para apreciar o vazio deixado por aquilo que já não está mais lá. Como se jamais tivesse sido real.
… uma pequena dificuldade de respirar… leve… deve aumentar… tomara…
A dor diminui, não percebo mais se estou deitado... Flutuo. Uma pequena ânsia de vômito, mas a engulo logo, porque não mereço mais essa desonra. Minhas pernas já dormem faz muito tempo.
Estarei com sorte?
Terminarei, contudo, Livre.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Meu Nome Não é Jano - Dois


mencionei que minha mãe, apesar de como encarou a experiência anterior, teve uma segunda gravidez e que dela surgiu meu irmão, agraciado com o nome comum, normal mesmo, de Rodrigo. Eu esperava que se chamasse Fevereiro, para logo apelidá-lo de Febo, mas meu pai já havia mudado de fase de vida, assim como minha mãe. O tão esperado Febo, que me eximiria da exclusividade da vergonha, traiu-me antes de ter conhecimento do significado de traição. Pérfido! Invariavelmente eu o amava, no entanto, e sorria para ele por sua boa sorte de ter menos uma pequena dor a que se curvar durante sua vida. Uma pequena leveza imperceptível e desprezada por aqueles que não sofrem do mal que a aniquila.
Portanto, eu estava sozinho nessa. Não havia com quem dividir o sofrimento. Retinha aquela sensação de desamparo geral que nos aflige como quando nos perdemos em uma cidade estranha que não conhecemos o idioma, ou quando o carro quebra em local ermo sem telefone ou sinal. Nesses momentos, a companhia de um companheiro de cela nos torna mais fortes e confiantes, pode mesmo transformar a circunstância em divertimento, e uma boa história a ser contada por duas memórias independentes e ligadas por um fato angustiante que em algum momento irá passar. Mas meu fato é perene e invariavelmente solitário.

Nunca imaginei que poderia estender tanto sobre um assunto de mérito tão duvidoso, mas esse discurso pode ser considerado entre as primícias de uma vida lamuriosa. Uma vida que me parece ordinária, embora especificamente minha, pois não há conversação entre nós, Humanos, que não envolva algum, por mínimo e imperceptível que seja, tipo de lamento, queixa, indignação, choro contido, expectativa frustrada, culpa, acusação, desdém, desprezo, ressentimento. E meu elementar gemido, meu primeiro pranto, meu sinal de vida, é minha designação leviana, minha alcunha pueril.

Esta é a terceira parte da história de Jano, que vai se construindo por si só e foi iniciada nos textos abaixo:

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A Praça

Antenor estancou como um jegue na seca com excesso de carga em plena praça pública antes das seis da manhã, quando foi fuzilado pela imagem rascante de corpos espalhados pela praça que se habituara a sempre cortar pelo caminho central duas vezes por dia rumo ao trabalho. Não viu diretamente, primeiro porque pousava suavemente os olhos no chão, e segundo porque tais coisas etéreas que flanam na mitologia das ruas não são possíveis enxergar frontalmente, mas apenas com aquele canto de olho, o pedante soslaio, o comum de esguelha, que por não ser o foco principal da visão, não é obscurecido pelas barreiras levantadas pelos costumes, pela ética e pela moral da sociedade, que salvaguarda o espírito do indivíduo dos males disponíveis. Um momento de mínima atenção por esse fugaz ângulo do campo periférico da visão foi suficiente para fazer algo em Antenor despertar.
Parado sob a brisa tépida matutina e a claridade nascente do sol, era ultrapassado e trombado por pessoas que resmungavam pressa, incapazes de enxergar o terror a que era submetido, cegos da mesma forma que ele próprio há poucos instantes. Aqueles corpos estavam lá, caídos, arriados, com pernas e braços entrelaçados como um Kama Sutra cadavérico, cabeças apoiadas em objetos indefiníveis, bocas abertas, olhos semicerrados, encolhidos ou esticados; e todos continuavam suas caminhadas sem se conter, sem perceber.
Antenor perscrutava em volta querendo gritar para que todos parassem em socorro, pois havia pessoas abandonadas pelo chão, em beliche sobre e sob bancos da praça, estirados na grama orvalhada, inertes, vivos ou mortos debaixo da única árvore, sujas, feridas e doentes. Conteve-se e deu mais um passo, inseguro, em direção ao trabalho; repetiu um segundo passo, numa cadência claudicante mal ajambrada, numa linha reta imprecisa, teso e tenso, perguntando-se desde quando aquela gente estava ali tão perto, quando chegaram, e quem havia permitido que ficassem. Não se moviam e temia atentar se respiravam, pois a negativa urgiria uma ação que não queria tomar.
Caminhou lentamente pendulando entre os rudes protestos daqueles que vinham atrás abraçados em suas pastas e bolsas, bafejando seu rosto com mau humor e resmungos ininteligíveis entre dentes, que o empurravam até o outro lado, atravessando a praça carregando seu espanto despercebido. Era-lhe impossível deixar de notar à sua volta os corpos que orlavam a certa distância a estreita trilha que forçadamente cruzava levado pela vaga da multidão.
Sentia um vazio sem dor em sua mente que o abobalhava a respeito do que deveria fazer, não sabendo corresponder o certo e o errado, estabelecer o significado de tantas pessoas largadas e ignoradas pelo chão, à sombra dos demais, representando um mera penumbra do ser humano, amortecidas pelo álcool e outros anódinos de desalento.
Quando o caminho se alargou ao atingir a calçada do ponto oposto que viera, parou novamente, girou o corpo sem se aborrecer com a ombrada de uma loura alta que tocava pesadamente o cimento com seus saltos vermelhos descombinados com o resto, mas que estabelecia profunda simpatia com aquele humor degenerado pela obrigatoriedade do trabalho e do dever imposto.
Chegou um pouco para o lado evitando a torrente humana, aprumou-se, focou a vista, tornou a cabeça indo e vindo cento e oitenta graus para analisar na praça, com as mãos na cintura como quem exerce autoridade sobre uma criança, aqueles que dormiam diante dos céus, mas o único sentimento que o acometeu foi o alívio em seus ombros por deixar aquela senzala pública. Uma vez fora, já não pertencia mais àquele sofrimento sonâmbulo, e seu aspecto medonho o havia abandonado, tendo sido deixado para trás naquela trilha de percalços.
Entendeu-se com sua consciência que a vida era assim mesmo, forçou-se em nome da moral apropriada a permanecer mais alguns segundos diante daquela cena inóspita provando para si mesmo que se importava e, com maior valor, que não havia nada que pudesse ser feito por ele. Culpou com toda a veemência que um pensamento solitário e isolado pode conter o poder de governo que desdenha da condição de seus cidadãos; recuou um passo em ré; verificou o relógio no punho direito; suspirou grato pela necessidade que o obrigava a seguir; os braços penderam ao lado da cintura fazendo cair um pouco os ombros gerando uma breve imagem abatida; mais uma vez girou o corpo sobre o calcanhar atrasado; e seguiu seu caminho.
E esqueceu. Trabalhou; almoçou; trabalhou.
Na volta, à tardinha, dobrou uma esquina antes da praça, obedecendo a um instinto que não era capaz de identificar.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sábado

Delemário chega à cozinha às dez para as seis ávido para tomar o seu café matinal. Pega o vidro da cafeteira, vê que o café é de ontem, provavelmente de ontem de manhã. Resmunga algo ininteligível, mas que certamente é voltado para sua esposa. Esvazia o café frio no ralo da pia sem deixar sua insatisfação fugir com uma careta de reprovação. Pega um canecão de alumínio, daqueles bem comuns, com alça de plástico preto duro, enche de água até a metade, pensando involuntariamente que nada pode estar cheio pela metade, e coloca no fogo.
Cruza a cozinha de um lado ao outro inúmeras vezes enquanto decorriam os infindáveis quinze minutos para a água ferver. Um dia normal, até que a água ferveu. Retirou do fogo e colocou o canecão na pia de mármore branco, com aquele paninho de prato que se pendura na alça da porta da geladeira, mais uma vez se perguntando porquê esse hábito milenar. Parecia que já penduravam panos de prato na alças das portas das geladeiras antes de existirem as geladeiras. Encheu as costas da cafeteira de água, quando se lembrou que não precisaria ter esquentado a água, a cafeteira era elétrica. Outro velho hábito.
Abriu o pacote de filtro de papel que pegou no armário sobre a pia e ajeitou-o como deveria. Tudo corria tão naturalmente que Delemário nem pensava no que fazia, sem contar, claro, o pano de prato na porta da geladeira e a água inutilmente fervida no fogão com o canecão meio cheio ou meio vazio. Abriu novamente o armário sobre a pia para pegar o pó. Colocou o pote sobre o mármore frio da manhã, abriu e fez outra careta: acabara o pó de café.
“Dulce!”, chamou, num tom que pretendia ser atendido por ela do quarto e que tentava não ser ouvido pelos vizinhos de condomínio. Sempre prezou pela boa convivência com seus vizinhos.
Nada, nem um gemido.
“Dulce, cadê o café?”, repetiu, certo que a explicação de sua vontade facilitaria a audiência de sua esposa.
Nada, nem um gemido.
“Porra, Dulce…”, dessa vez baixinho para si mesmo, enquanto saía da cozinha para o quarto. Abriu a porta e viu a esposa, consumindo obliquamente todo o espaço da cama com suas pernas abertas e de bruços, com o bundão balzaquiano cumprimentando quem estivesse na porta, o braço direito esticado com o cotovelo dobrando para baixo quando a lateral da cama acabava. O esquerdo se curvava do outro lado com a palma para cima tocando o rim. A perna direita dobrava em ângulo reto, o que lhe dava uma posição meio-de-lado. O pé esquerdo fugia da cama apontando para o chão, alinhado com a perna esticada. Não conseguiu distinguir seu rosto, de lado e virado para a parede, coberto pelos cabelos louros. Vendo essa expressão de conforto às seis e dezoito da manhã de sábado, desistiu de acordá-la e voltou para a cozinha. Era uma questão dele se acordava cedo sempre, inclusive nos feriados nacionais. Dulce não merecia isso e deixou que continuasse dormindo.
Vasculhou todas as portas da cozinha e não encontrou o pó. A água fervida acentuava sua inutilidade à medida que esfriava. Finalmente, como uma iluminação divina que acomete os homens desabituados às disposições domésticas, após quarenta minutos acordado sem conseguir tomar seu café, foi verificar a despensa, que ficava atravessando a área de serviço com a máquina de lavar e o tanque. Na primeira porta, o pacote de pó saltou para suas mãos, que pareciam trêmulas como a de um viciado em abstinência, derrubando o pote vazio que carregara até ali e espalhando um restolho de pó na chão frio. Seu frenesi o fez passar com destreza pela área de serviço sem notar as poucas roupas penduradas no varal havia dois dias.
Colocou o pó dentro do filtro da cafeteira e ligou, derrubando um pouco e salpicando a alvura fria do mármore. Pegou a vassoura e a pá de lixo e voltou para a despensa. Ou quase. Na porta da cozinha para a área de serviço parou assombrado. Um ponto vermelho havia invadido seu campo de visão e o fez estacar como um burro no meio do caminho entre a fazenda e o mercado. Olhou para cima e avistou o objeto curioso. Percebeu do que se tratava num átimo, mas levou mais alguns segundos para assimilar conscientemente. Baixou o varal e pegou uma calcinha vermelha, cheirosa de amaciante e sabão em pó.
Analisou a calcinha como quem brinca com um elástico entre os dez dedos, puxando aqui e ali, levantando à altura dos olhos, virando e revirando. A cor. A cor era o mais intrigante. Há anos não via uma cor dessas dentro de casa. Pelo menos uns quatro ou cinco anos, depois que a euforia do casamento havia amainado numa bonança individualizadora, com as tarefas, as brigas e o sexo bem definidos tendo, cada um, data, hora e culpado programados. Até as pazes eram previsíveis e, às vezes, lhe rendiam um sexo extra, talvez com preliminares se tivesse razão ou se desculpado adequadamente. Mas uma calcinha vermelha mudava tudo, ainda mais lavada às sete horas da manhã de um sábado qualquer.
Revirada nas mãos, notou a renda que deixava translúcida a parte da frente e o fio único que supostamente serviria para proteger a retaguarda. Esta parte iria precisar de reforços, pois havia um único soldado. O fio era tão fino que seria tragado por qualquer par de nádegas minimamente desenvolvido. Até as de Delemário. Pelo bundão da Dulce, então…
O bundão de Dulce… O que o bundão de Dulce estaria fazendo com um risco vermelho desses desaparecendo entre seus Alpes? Para quem? Seus rosto, aos poucos, ia igualando-se à calcinha em suas mãos, ao mesmo tempo que a cafeteira transpirava o vapor d’água. Mal percebeu o cheiro de café tomando conta da cozinha, um dos poucos prazeres que Delemário preservava depois de ter se casado.
Dulce apareceu na porta e viu Delemário de costas com alguma coisa na mão. Parecendo um sensitivo de filme de ação ou de terror, perguntou a Dulce sem se voltar.
“O que é isso?” e direto, sem rodeios: “Pra quem é isso?”
“Como assim, Dê?! É minha!”, parecendo pouco impressionada. “Acordei com o cheiro do café. Está uma delícia, como sempre”, imaginando o assunto estar encerrado.
“Que tipo de calcinha é essa? Deve ter custado menos que um real, pois o custo com pano foi irrisório”, disse, tentando ser irônico o suficiente para convencer a esposa sobre sua indignação.
“Tipo que se coloca por baixo das calças ou das saias. Geralmente é utilizada por mulheres, mas se quiser experimentar…” Essa, sim, foi irônica, matando o espírito de Delemário.
“Dulce, eu nunca vi uma calcinha dessas aqui em casa, só quando namorávamos e, mesmo assim, no início, na faculdade. Depois disso, só vejo cor-da-pele com cara de calção. Que porra é essa?”. O “porra” parece ter acordado Dulce, ofendida.
“Como assim Delemário? O que VOCÊ quer dizer com isso? Que eu estou te traindo?” Delemário estava possesso. Nunca havia desconfiado de Dulce antes e pouco demonstrado ciúme, mais até para agradar Dulce, que dizia que quem não tinha ciúmes, não amava de verdade, e que na dose certa temperava a relação sem salgá-la. Mas o vermelho tomava conta do corpo de Delemário e o ensurdecia para as palavras de Dulce, fazendo com que a realidade bege de seu casamento fosse destruída. Tudo mudara. Continuou, portanto.
“Essa coisa vermelha, que nem esconde o seu rabo, deve ter sido comprada para sair com alguém. Quem é, Dulce? Quem é o filho da puta que está te comendo? Esse lado aqui até está puído. Tem usado muito? Como eu nunca a vi? E, de repente, ela secando no varal.”
“Você está falando sério, Dê? Está desconfiando mesmo de mim?”, respondeu entre perplexa e irada. O tom ainda era baixo, mas às oito da manhã de qualquer sábado, parecia uma batida de carro.
“Deve ser o Andrade, aí de cima. Eu percebi você e ele no elevador.”
“Que elevador, Dê?”
“O social, com espelho.”
“Não, Dê. Quero dizer que nunca houve nada em elevador nenhum, nem de serviço, nem social. E quem é Andrade? Do Flamengo?” Era o sarcasmo que matava Delemário, mais ainda que a ironia, terminando o serviço que o escarlate tecido começara. Delemário já não era mais Dê, só Dulce não percebeu.
“Não me sacaneie, Dulce. Todo o prédio já deve estar sabendo. Delemário, O Corno. Com um nome como o meu, já devem até ter inventado uma rima. E as velhinhas gêmeas do 19? Bem vi que quando passo uma fala com a outra, que me olha de lado e mostra um ou dois daqueles dentes falsos. Todo mundo deve estar rindo de mim, principalmente o Andrade.”
“Quem é Andrade?”
“Não se faça de besta! O vizinho de cima. Aposto que foi só ele falar sobre o tempo no elevador que tudo começou”, de um jeito como quem informa o óbvio.
“DELEMÁRIO! Você passou de qualquer limite. Nem temos vizinhos em cima.” Indignou-se convicta.
“Não se faça de besta!”, repetiu, agora demonstrando clareza de raciocínio.
Um instante de silêncio foi suficiente para a certeza preencher todo o vazio que o vermelho havia instaurado. Imaginou-se em casa ou no trabalho e a esposa com o Andrade, se olhando no espelho do elevador ou se contorcendo nas escadas, com a calcinha vermelha caída até os tornozelos, sacudindo conforme a maré. O porteiro vendo pela câmera de segurança, as velhinhas sabendo pelo porteiro, os risinhos estreitos que entremeiam o “pouca-vergonha” de praxe que as senhoras exaram quando deparadas com prazeres que não são mais capazes de possuir ou que nunca tiveram. E das passas-gêmeas o mundo inteiro saberia. Já sabia. E ria. Uma gota de espuma prendeu-se no lábio inferior de Delemário, sem que os dois presentes se dessem conta.
 Com uma xícara de café na mão, Dulce protestou: “Estou muito chateada c…” A frase de Dulce ficou pelo caminho quando Delemário irrompeu pelo corredor até o quarto. Parou dois passos dentro do recinto conjugal, como que pensando no que viera fazer ali. Num momento, olhou para cima, mirando entre o teto do guarda-roupa e o teto rebaixado em gesso. Abriu a porta do segundo nível do armário, colocou um pé na cama por fazer e o outro em cima de algumas camisas bem passadas. Segurou com a mão esquerda o nível superior e com a direita tateou por cima da cabeça por vários segundos. Quando tocou o que queria, foi puxando com a ponta dos dedos, centímetro por centímetro até que pudesse abraçá-lo com toda a mão.
Trouxe para baixo uma caixa de sapatos sem sapato. Pousou sobre a cama, entre uma dobra da manta embolada e o lençol que se desprendia da parte de baixo do colchão. Dulce sempre se mexeu muito na cama e a dominava todas as noites, pelo menos durante o sono. “Será que ela e o Andrade deixavam a cama assim?”, alimentava a própria raiva.
Abriu a caixa e admirou por outros intermináveis segundos seu conteúdo. Uns seis ou sete segundos. Pegou a arma e verificou as cinco balas no tambor. Não pensava, odiava. Ouvia risos e gemidos se misturando, dedos apontando, o vermelho turvando sua visão.
Chegou à porta da cozinha com a arma na mão direita, que pendia de um braço morto colado ao corpo por um ombro sem forças que se escorava no portal, e a calcinha vermelha na mão esquerda. Dulce não percebeu, pois estava na pia, de lado para a porta de Delemário, manuseando a xícara debaixo do feixe de água fria que, como magia, saía da torneira, concentrada em retirar o sabão que se impregnava, com a cara fechada que Delemário lhe presenteara nesta manhã.
“Dulce”, chamou brandamente Delemário, colocando a mão armada por trás da parede na qual se apoiava.
“Não enche o saco, Dê. Você vem me acusando de infidelidade só porque encontrou uma calcinha nova no varal e quer conversar com esse tonzinho de desculpas? Não tô afim.” Continuou, largando a xícara no escorredor e pegando o canecão sobre a pia. “A calcinha era para o seu aniversário, nem experimentei na loja.”
“Como pode mentir mal assim, com essa cara de santa? Ela estava lavada. Deve ter usado muito.”
“Delemário, seu babaca, ninguém usa calcinha direto da loja. Outras mulheres, que sei lá com quê catinga entre as pernas, colocam essa merda. Sempre lavo minhas calcinhas antes de usar. Nem experimentei ainda.”
“Faz tempo, viu?! Faz tempo que percebo que nossa relação vem mudando. Você vem mudando. Não se importa mais comigo, não me procura na cama e, quando consigo um pequeno prazer de você, parece que não se dedica ao sexo, é só burocrática como se cumprisse uma ordem judicial.”
Faltava pouco. Dulce bateu com estrondo o canecão no mármore, escapando de sua mão e caindo com estardalhaço metálico no piso envelhecido da cozinha, às oito e trinta e cinco. Ambos observaram até que o barulho parasse de ressoar em suas cabeças. Aquilo só exasperou ainda mais o casal: Delemário porque considerou uma burrice feminina deixar cair daquele modo o canecão; Dulce porque atribuiu a culpa daquele estrondo à insensatez masculina de Delemário. O ódio recíproco crescia no silêncio mútuo dos dois. Ninguém se mexia para pegar o canecão. Mal se respirava, até que Delemário fala.
“Tá vendo?”
Aquilo, para Dulce, era como resumir todas as ofensas que ouvira até hoje e incluía todas as pequenas coisas que tivera que aguentar pelo seu casamento. Falou.
“É isso mesmo, Delemário. Você não merece o presente que eu ia te dar. Não merece nada. Burra sou EU, que aceitei seu machismo depois de uma faculdade juntos e cedi ao ‘mulher minha não trabalha’. Ultimamente você só chega tarde da noite, não percebe meus esforços dentro dessa casa, nem elogia minha comida, some nos finais de semana sempre tendo um futebol ou churrasco para ir, quando não são as duas coisas!, com amigos antigos que surgem do nada e que nunca são os mesmos semana após semana. Vive nos botecos e eu fico aqui, em casa, esperando. Uma vida esperando você. Você não merece nada. Esperava fazer alguma coisa voltar a ser como era antes de nos casarmos. Sua agenda sempre está cheia demais para mim. E mais, essa sua teoria antiquada sobre o trabalho da mulher, sobre o meu trabalho, só acabou nesse fiasco financeiro que é a nossa vida, sem qualquer perspectiva. Sua profissãozinha de merda não vale nada, já que você não tem ambição, não é homem de se tornar dono de alguma coisa, de arriscar, como poderia ter feito há três anos. Você trabalha como um corno para ganhar um soldo de cabo do exército.”
A única coisa que Delemário ouviu com clareza no discurso verdadeiro de Dulce foi “corno”. Estranhamente, esboçou um sorrisinho mínimo que ditava “não falei?”, e que confirmava sua vergonha diante de todo o prédio e de sua consciência. Por regra universal, ele era o último a saber. Anteviu os risos das velhas gêmeas do 19, com aquele olhar paralelo em sua direção. E o que diriam entre si? E o que diriam aos outros? E o Andrade?, satisfeito depois de transar com Dulce e apertando minha mão ainda com o cheiro dela impregnado no indicador e no médio.
O que o dilacerava era o conhecimento geral. Dividir a esposa na surdina doía, mas ver sua vergonha disponível a todos, era intolerável, rascante. A verdadeira traição para Delemário era tornar pública sua ignomínia. Delemário continuava num ódio vermelho, fica ereto descolando-se do umbral com um leve jogo de ombro, o que permite que Dulce veja a arma.
Dulce baixa os olhos na direção da cintura de Delemário, que não sabe se ela vê a arma ou a calcinha, e solta um risinho monossílabo de canto de boca expelindo ar quente por ele, anunciando cansaço de tudo, logo às oito e quarenta e quatro. Para Delemário, aquele foi o último escárnio: rir de sua dor e duvidar de sua virilidade.
Dispara como John Wayne, ou Charles Bronson, contra Dulce, que cai morta no meio da cozinha ao lado do canecão e sangrando, com o esgar debochado colado no rosto, agora, para sempre. Delemário sobe cinco andares de escada, não que pretendesse escapar à prisão, só não queria ser pego antes de cumprir sua redenção. Tocou a campainha e esperou. Devia ser quase nove horas, mas esses tipos de pessoas acordam cedo. Em pé, diante da porta de madeira, pensava somente naqueles dentes falsos à mostra, persistindo uma leve inquietação sobre a culpa. Apesar de tudo, não queria ser injusto. Com um simpático “bom dia”, uma velha atendeu. Aquela simpatia excessiva, a inclinação do “i”, e num sábado pela manhã, tudo demonstrava cabalmente a cumplicidade com os fatos daquela senhora de camisola branca e bolero cor-da-pele sobre ela. Uma combinação que, por um décimo de segundo, Delemário não soube dizer se estava certa, para logo em seguida retomar em sua mente a vergonha rubra que o inflamava. O primeiro disparo passou bem rente à axila direita da primeira gêmea, que mal teve tempo de se assustar. O segundo tiro, ajustada a mira pelo primeiro erro, cortou o decrépito coração da simpática senhora.
Entrou no apartamento saltando o corpo que tinha os olhos vidrados no teto e os dentes odiosos à mostra sem sorrir, atravessou a sala e estava no corredor que leva ao quarto principal quando se deparou com a outra gêmea, molhada com uma toalha vermelha cobrindo o corpo. Somente um surdo “ah!” de susto, um estampido seco e a última gêmea gemia no chão. O ombro destruído e possivelmente em estado de choque. Mais um tiro e faltava pouco para ninguém mais rir dele.
Descendo as escadas para o décimo quinto andar, Delemário se surpreendia por não aparecer ninguém. “Será que este mundo está tão acostumado com tanta loucura e violência que não reagiam mais aos sons de tiros? E tão perto, nos corredores! Não. Todos conhecem e gargalham dos meus chifres. Já esperavam por isso. Estão prevenidos. Sabiam que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Uma profecia que se cumpre, nada mais.” Por isso a calmaria, arrematava, assim, seu pensamento.
Chegou no apartamento sobre o seu. De novo parou na porta, pensando nos seis anos que havia vivido com Dulce nesse condomínio. Tocou a campainha, que não emitiu qualquer som. Testou a maçaneta que se abriu com facilidade. Entrou com ímpeto, o corpo à frente de seus pés, inclinado como uma fera num ataque, berrando “Andra-deeeee”. Percorreu todos os cômodos até perceber que não havia ninguém, não havia nada. Estava tudo vazio. Chegou à cozinha, que era idêntica à sua, salvo por estar apenas com um pequeno criado mudo no centro.
Aproximou-se e abriu a primeira gaveta com a mão que segurava a calcinha vermelha. Havia um papel. Leu. Nele constavam a frase “Vendo (em inventário)”, um nome, um número de telefone, encerrado pelo título profissional “corretor de imóveis”. Havia uma data também, de doze anos antes.
Empalideceu.
Não soube como estava de volta à sua cozinha. Dulce na mesma posição, mais pálida, mas com o deboche colado ao rosto.
Delemário levantou a camisola de Dulce e começou, perto de nove e meia, a colocar a calcinha vermelha pelos calcanhares da esposa.
Não passou pelo bundão. Não coube.