Delemário
chega à cozinha às dez para as seis ávido para tomar o seu café matinal. Pega o
vidro da cafeteira, vê que o café é de ontem, provavelmente de ontem de manhã.
Resmunga algo ininteligível, mas que certamente é voltado para sua esposa.
Esvazia o café frio no ralo da pia sem deixar sua insatisfação fugir com uma
careta de reprovação. Pega um canecão de alumínio, daqueles bem comuns, com alça
de plástico preto duro, enche de água até a metade, pensando involuntariamente
que nada pode estar cheio pela metade, e coloca no fogo.
Cruza a cozinha de um lado ao outro inúmeras vezes enquanto decorriam os infindáveis quinze minutos
para a água ferver. Um dia normal, até que a água ferveu. Retirou do fogo e
colocou o canecão na pia de mármore branco, com aquele paninho de prato que se
pendura na alça da porta da geladeira, mais uma vez se perguntando porquê esse
hábito milenar. Parecia que já penduravam panos de prato na alças das portas
das geladeiras antes de existirem as geladeiras. Encheu as costas da cafeteira
de água, quando se lembrou que não precisaria ter esquentado a água, a
cafeteira era elétrica. Outro velho hábito.
Abriu o pacote de filtro
de papel que pegou no armário sobre a pia e
ajeitou-o como deveria. Tudo corria tão naturalmente que Delemário nem pensava
no que fazia, sem contar, claro, o pano de prato na porta da geladeira e a água
inutilmente fervida no fogão com o canecão meio cheio ou meio vazio. Abriu
novamente o armário sobre a pia para pegar o pó. Colocou o pote sobre o mármore
frio da manhã, abriu e fez outra careta: acabara o pó de café.
“Dulce!”, chamou, num tom que pretendia ser atendido por ela do
quarto e que tentava não ser ouvido pelos vizinhos de condomínio. Sempre prezou
pela boa convivência com seus vizinhos.
Nada, nem um gemido.
“Dulce, cadê o café?”, repetiu, certo que a explicação de sua
vontade facilitaria a audiência de sua esposa.
Nada, nem um gemido.
“Porra, Dulce…”, dessa vez baixinho para si mesmo, enquanto saía
da cozinha para o quarto. Abriu a porta e viu a esposa, consumindo obliquamente
todo o espaço da cama com suas pernas abertas e de bruços, com o bundão
balzaquiano cumprimentando quem estivesse na porta, o braço direito esticado
com o cotovelo dobrando para baixo quando a lateral da cama acabava. O esquerdo
se curvava do outro lado com a palma para cima tocando o rim. A perna direita
dobrava em ângulo reto, o que lhe dava uma posição meio-de-lado. O pé esquerdo
fugia da cama apontando para o chão, alinhado com a perna esticada. Não
conseguiu distinguir seu rosto, de lado e virado para a parede, coberto pelos
cabelos louros. Vendo essa expressão de conforto às seis e dezoito da manhã de
sábado, desistiu de acordá-la e voltou para a cozinha. Era uma questão dele se
acordava cedo sempre, inclusive nos feriados nacionais. Dulce não merecia isso
e deixou que continuasse dormindo.
Vasculhou todas as portas
da cozinha e não encontrou o pó. A água fervida acentuava
sua inutilidade à medida que esfriava. Finalmente, como uma iluminação divina
que acomete os homens desabituados às disposições domésticas, após quarenta
minutos acordado sem conseguir tomar seu café, foi verificar a despensa, que
ficava atravessando a área de serviço com a máquina de lavar e o tanque. Na
primeira porta, o pacote de pó saltou para suas mãos, que pareciam trêmulas
como a de um viciado em abstinência, derrubando o pote vazio que carregara até
ali e espalhando um restolho de pó na chão frio. Seu frenesi o fez passar com
destreza pela área de serviço sem notar as poucas roupas penduradas no varal
havia dois dias.
Colocou o pó dentro do filtro da cafeteira e ligou, derrubando um pouco e
salpicando a alvura fria do mármore. Pegou a vassoura e a pá de lixo e voltou
para a despensa. Ou quase. Na porta da cozinha para a área de serviço parou
assombrado. Um ponto vermelho havia invadido seu campo de visão e o fez estacar
como um burro no meio do caminho entre a fazenda e o mercado. Olhou para cima e
avistou o objeto curioso. Percebeu do que se tratava num átimo, mas levou mais
alguns segundos para assimilar conscientemente. Baixou o varal e pegou uma
calcinha vermelha, cheirosa de amaciante e sabão em pó.
Analisou a calcinha como
quem brinca com um elástico entre os dez
dedos, puxando aqui e ali, levantando à altura dos olhos, virando e revirando.
A cor. A cor era o mais intrigante. Há anos não via uma cor dessas dentro de
casa. Pelo menos uns quatro ou cinco anos, depois que a euforia do casamento
havia amainado numa bonança individualizadora, com as tarefas, as brigas e o
sexo bem definidos tendo, cada um, data, hora e culpado programados. Até as
pazes eram previsíveis e, às vezes, lhe rendiam um sexo extra, talvez com
preliminares se tivesse razão ou se desculpado adequadamente. Mas uma calcinha
vermelha mudava tudo, ainda mais lavada às sete horas da manhã de um sábado
qualquer.
Revirada nas mãos, notou a renda que deixava translúcida a parte da frente e o
fio único que supostamente serviria para proteger a retaguarda. Esta parte iria
precisar de reforços, pois havia um único soldado. O fio era tão fino que seria
tragado por qualquer par de nádegas minimamente desenvolvido. Até as de Delemário.
Pelo bundão da Dulce, então…
O bundão de Dulce… O que o bundão de Dulce estaria fazendo com um
risco vermelho desses desaparecendo entre seus Alpes? Para quem? Seus rosto,
aos poucos, ia igualando-se à calcinha em suas mãos, ao mesmo tempo que a
cafeteira transpirava o vapor d’água. Mal percebeu o cheiro de café tomando
conta da cozinha, um dos poucos prazeres que Delemário preservava depois de ter
se casado.
Dulce apareceu na porta e
viu Delemário de costas com alguma coisa na mão.
Parecendo um sensitivo de filme de ação ou de terror, perguntou a Dulce sem se
voltar.
“O que é isso?” e direto, sem rodeios: “Pra quem é isso?”
“Como assim, Dê?! É minha!”, parecendo pouco impressionada. “Acordei
com o cheiro do café. Está uma delícia, como sempre”, imaginando o assunto
estar encerrado.
“Que tipo de calcinha é essa? Deve ter custado menos que um
real, pois o custo com pano foi irrisório”, disse, tentando ser irônico o
suficiente para convencer a esposa sobre sua indignação.
“Tipo que se coloca por baixo das calças ou das saias.
Geralmente é utilizada por mulheres, mas se quiser experimentar…” Essa, sim,
foi irônica, matando o espírito de Delemário.
“Dulce, eu nunca vi uma calcinha dessas aqui em casa, só quando
namorávamos e, mesmo assim, no início, na faculdade. Depois disso, só vejo
cor-da-pele com cara de calção. Que porra é essa?”. O “porra” parece ter
acordado Dulce, ofendida.
“Como assim Delemário? O que VOCÊ quer dizer com isso? Que eu
estou te traindo?” Delemário estava possesso. Nunca havia desconfiado de Dulce
antes e pouco demonstrado ciúme, mais até para agradar Dulce, que dizia que
quem não tinha ciúmes, não amava de verdade, e que na dose certa temperava a
relação sem salgá-la. Mas o vermelho tomava conta do corpo de Delemário e o
ensurdecia para as palavras de Dulce, fazendo com que a realidade bege de seu
casamento fosse destruída. Tudo mudara. Continuou, portanto.
“Essa coisa vermelha, que nem esconde o seu rabo, deve ter sido
comprada para sair com alguém. Quem é, Dulce? Quem é o filho da puta que está
te comendo? Esse lado aqui até está puído. Tem usado muito? Como eu nunca a vi?
E, de repente, ela secando no varal.”
“Você está falando sério, Dê? Está desconfiando mesmo de mim?”,
respondeu entre perplexa e irada. O tom ainda era baixo, mas às oito da manhã
de qualquer sábado, parecia uma batida de carro.
“Deve ser o Andrade, aí de cima. Eu percebi você e ele no elevador.”
“Que elevador, Dê?”
“O social, com espelho.”
“Não, Dê. Quero dizer que nunca houve nada em elevador nenhum,
nem de serviço, nem social. E quem é Andrade? Do Flamengo?” Era o sarcasmo que
matava Delemário, mais ainda que a ironia, terminando o serviço que o escarlate
tecido começara. Delemário já não era mais Dê, só Dulce não percebeu.
“Não me sacaneie, Dulce. Todo o prédio já deve estar sabendo.
Delemário, O Corno. Com um nome como o meu, já devem até ter inventado uma
rima. E as velhinhas gêmeas do 19? Bem vi que quando passo uma fala com a
outra, que me olha de lado e mostra um ou dois daqueles dentes falsos. Todo
mundo deve estar rindo de mim, principalmente o Andrade.”
“Quem é Andrade?”
“Não se faça de besta! O vizinho de cima. Aposto que foi só ele
falar sobre o tempo no elevador que tudo começou”, de um jeito como quem
informa o óbvio.
“DELEMÁRIO! Você passou de qualquer limite. Nem temos vizinhos
em cima.” Indignou-se convicta.
“Não se faça de besta!”, repetiu, agora demonstrando clareza de
raciocínio.
Um instante de silêncio foi suficiente para a certeza preencher todo o vazio que o
vermelho havia instaurado. Imaginou-se em casa ou no trabalho e a esposa com o
Andrade, se olhando no espelho do elevador ou se contorcendo nas escadas, com a
calcinha vermelha caída até os tornozelos, sacudindo conforme a maré. O
porteiro vendo pela câmera de segurança, as velhinhas sabendo pelo porteiro, os
risinhos estreitos que entremeiam o “pouca-vergonha” de praxe que as senhoras
exaram quando deparadas com prazeres que não são mais capazes de possuir ou que
nunca tiveram. E das passas-gêmeas o mundo inteiro saberia. Já sabia. E ria.
Uma gota de espuma prendeu-se no lábio inferior de Delemário, sem que os dois
presentes se dessem conta.
Com uma xícara
de café na mão, Dulce protestou: “Estou muito chateada c…” A frase de Dulce
ficou pelo caminho quando Delemário irrompeu pelo corredor até o quarto. Parou
dois passos dentro do recinto conjugal, como que pensando no que viera fazer
ali. Num momento, olhou para cima, mirando entre o teto do guarda-roupa e o
teto rebaixado em gesso. Abriu a porta do segundo nível do armário, colocou um
pé na cama por fazer e o outro em cima de algumas camisas bem passadas. Segurou
com a mão esquerda o nível superior e com a direita tateou por cima da cabeça
por vários segundos. Quando tocou o que queria, foi puxando com a ponta dos
dedos, centímetro por centímetro até que pudesse abraçá-lo com toda a mão.
Trouxe para baixo uma
caixa de sapatos sem sapato. Pousou sobre a cama, entre uma dobra da manta
embolada e o lençol que se desprendia da parte de baixo do
colchão. Dulce sempre se mexeu muito na cama e a dominava todas as noites, pelo
menos durante o sono. “Será que ela e o Andrade deixavam a cama assim?”,
alimentava a própria raiva.
Abriu a caixa e admirou
por outros intermináveis segundos seu conteúdo.
Uns seis ou sete segundos. Pegou a arma e verificou as cinco balas no tambor. Não
pensava, odiava. Ouvia risos e gemidos se misturando, dedos apontando, o
vermelho turvando sua visão.
Chegou à porta da cozinha com a arma na mão direita, que pendia de um
braço morto colado ao corpo por um ombro sem forças que se escorava no portal,
e a calcinha vermelha na mão esquerda. Dulce não percebeu, pois estava na pia,
de lado para a porta de Delemário, manuseando a xícara debaixo do feixe de água
fria que, como magia, saía da torneira, concentrada em retirar o sabão que se
impregnava, com a cara fechada que Delemário lhe presenteara nesta manhã.
“Dulce”, chamou brandamente Delemário, colocando a mão armada
por trás da parede na qual se apoiava.
“Não enche o saco, Dê. Você vem me acusando de infidelidade só
porque encontrou uma calcinha nova no varal e quer conversar com esse tonzinho
de desculpas? Não tô afim.” Continuou, largando a xícara no escorredor e
pegando o canecão sobre a pia. “A calcinha era para o seu aniversário, nem
experimentei na loja.”
“Como pode mentir mal assim, com essa cara de santa? Ela estava
lavada. Deve ter usado muito.”
“Delemário, seu babaca, ninguém usa calcinha direto da loja.
Outras mulheres, que sei lá com quê catinga entre as pernas, colocam essa
merda. Sempre lavo minhas calcinhas antes de usar. Nem experimentei ainda.”
“Faz tempo, viu?! Faz tempo que percebo que nossa relação vem
mudando. Você vem mudando. Não se importa mais comigo, não me procura na cama
e, quando consigo um pequeno prazer de você, parece que não se dedica ao sexo, é
só burocrática como se cumprisse uma ordem judicial.”
Faltava pouco. Dulce
bateu com estrondo o canecão no mármore, escapando
de sua mão e caindo com estardalhaço metálico no piso envelhecido da cozinha, às
oito e trinta e cinco. Ambos observaram até que o barulho parasse de ressoar em
suas cabeças. Aquilo só exasperou ainda mais o casal: Delemário porque
considerou uma burrice feminina deixar cair daquele modo o canecão; Dulce
porque atribuiu a culpa daquele estrondo à insensatez masculina de Delemário. O
ódio recíproco crescia no silêncio mútuo dos dois. Ninguém se mexia para pegar
o canecão. Mal se respirava, até que Delemário fala.
“Tá vendo?”
Aquilo, para Dulce, era
como resumir todas as ofensas que ouvira até
hoje e incluía todas as pequenas coisas que tivera que aguentar pelo seu
casamento. Falou.
“É isso mesmo, Delemário. Você não merece o presente que eu ia
te dar. Não merece nada. Burra sou EU, que aceitei seu machismo depois de uma
faculdade juntos e cedi ao ‘mulher minha não trabalha’. Ultimamente você só
chega tarde da noite, não percebe meus esforços dentro dessa casa, nem elogia
minha comida, some nos finais de semana sempre tendo um futebol ou churrasco
para ir, quando não são as duas coisas!, com amigos antigos que surgem do nada
e que nunca são os mesmos semana após semana. Vive nos botecos e eu fico aqui,
em casa, esperando. Uma vida esperando você. Você não merece nada. Esperava
fazer alguma coisa voltar a ser como era antes de nos casarmos. Sua agenda
sempre está cheia demais para mim. E mais, essa sua teoria antiquada sobre o
trabalho da mulher, sobre o meu trabalho, só acabou nesse fiasco financeiro que
é a nossa vida, sem qualquer perspectiva. Sua profissãozinha de merda não vale
nada, já que você não tem ambição, não é homem de se tornar dono de alguma
coisa, de arriscar, como poderia ter feito há três anos. Você trabalha como um
corno para ganhar um soldo de cabo do exército.”
A única coisa que Delemário ouviu com clareza no discurso
verdadeiro de Dulce foi “corno”. Estranhamente, esboçou um sorrisinho mínimo
que ditava “não falei?”, e que confirmava sua vergonha diante de todo o prédio
e de sua consciência. Por regra universal, ele era o último a saber. Anteviu os
risos das velhas gêmeas do 19, com aquele olhar paralelo em sua direção. E o
que diriam entre si? E o que diriam aos outros? E o Andrade?, satisfeito depois
de transar com Dulce e apertando minha mão ainda com o cheiro dela impregnado
no indicador e no médio.
O que o dilacerava era o
conhecimento geral. Dividir a esposa na surdina doía, mas ver sua vergonha disponível a todos, era intolerável,
rascante. A verdadeira traição para Delemário era tornar pública sua ignomínia.
Delemário continuava num ódio vermelho, fica ereto descolando-se do umbral com
um leve jogo de ombro, o que permite que Dulce veja a arma.
Dulce baixa os olhos na
direção da cintura de Delemário, que não sabe
se ela vê a arma ou a calcinha, e solta um risinho monossílabo de canto de boca
expelindo ar quente por ele, anunciando cansaço de tudo, logo às oito e
quarenta e quatro. Para Delemário, aquele foi o último escárnio: rir de sua dor
e duvidar de sua virilidade.
Dispara como John Wayne,
ou Charles Bronson, contra Dulce, que cai morta no meio da cozinha ao lado do
canecão e sangrando, com o esgar debochado
colado no rosto, agora, para sempre. Delemário sobe cinco andares de escada, não
que pretendesse escapar à prisão, só não queria ser pego antes de cumprir sua
redenção. Tocou a campainha e esperou. Devia ser quase nove horas, mas esses
tipos de pessoas acordam cedo. Em pé, diante da porta de madeira, pensava
somente naqueles dentes falsos à mostra, persistindo uma leve inquietação sobre
a culpa. Apesar de tudo, não queria ser injusto. Com um simpático “bom dia”,
uma velha atendeu. Aquela simpatia excessiva, a inclinação do “i”, e num sábado
pela manhã, tudo demonstrava cabalmente a cumplicidade com os fatos daquela senhora
de camisola branca e bolero cor-da-pele sobre ela. Uma combinação que, por um décimo
de segundo, Delemário não soube dizer se estava certa, para logo em seguida
retomar em sua mente a vergonha rubra que o inflamava. O primeiro disparo
passou bem rente à axila direita da primeira gêmea, que mal teve tempo de se
assustar. O segundo tiro, ajustada a mira pelo primeiro erro, cortou o decrépito
coração da simpática senhora.
Entrou no apartamento
saltando o corpo que tinha os olhos vidrados no teto e os dentes odiosos à mostra sem sorrir, atravessou a sala e estava no corredor que
leva ao quarto principal quando se deparou com a outra gêmea, molhada com uma
toalha vermelha cobrindo o corpo. Somente um surdo “ah!” de susto, um estampido
seco e a última gêmea gemia no chão. O ombro destruído e possivelmente em
estado de choque. Mais um tiro e faltava pouco para ninguém mais rir dele.
Descendo as escadas para
o décimo quinto andar, Delemário se
surpreendia por não aparecer ninguém. “Será que este mundo está tão acostumado
com tanta loucura e violência que não reagiam mais aos sons de tiros? E tão
perto, nos corredores! Não. Todos conhecem e gargalham dos meus chifres. Já
esperavam por isso. Estão prevenidos. Sabiam que isso aconteceria mais cedo ou
mais tarde. Uma profecia que se cumpre, nada mais.” Por isso a calmaria,
arrematava, assim, seu pensamento.
Chegou no apartamento
sobre o seu. De novo parou na porta, pensando nos seis anos que havia vivido
com Dulce nesse condomínio. Tocou a campainha,
que não emitiu qualquer som. Testou a maçaneta que se abriu com facilidade.
Entrou com ímpeto, o corpo à frente de seus pés, inclinado como uma fera num
ataque, berrando “Andra-deeeee”. Percorreu todos os cômodos até perceber que não
havia ninguém, não havia nada. Estava tudo vazio. Chegou à cozinha, que era idêntica
à sua, salvo por estar apenas com um pequeno criado mudo no centro.
Aproximou-se e abriu a
primeira gaveta com a mão que segurava a
calcinha vermelha. Havia um papel. Leu. Nele constavam a frase “Vendo (em inventário)”,
um nome, um número de telefone, encerrado pelo título profissional “corretor de
imóveis”. Havia uma data também, de doze anos antes.
Empalideceu.
Não soube como estava de volta à sua cozinha. Dulce na mesma posição,
mais pálida, mas com o deboche colado ao rosto.
Delemário levantou a camisola de Dulce e começou, perto de nove e
meia, a colocar a calcinha vermelha pelos calcanhares da esposa.
Não passou pelo bundão. Não coube.