domingo, 9 de fevereiro de 2014

Clausura

Quando eu acordei a primeira vez, imaginei que tinha ficado cego. Sabia que meus olhos estavam abertos, mas só via escuridão. Imediatamente quis me levantar em desespero, mas bati com a cabeça em alguma coisa. Foi uma batida fraca, pois o objeto estava bem próximo a ela. Quis trazer minha mão à testa para esfregar o local da pancada, mas ela se prendeu numa lateral rígida, resvalou no teto e ficou contida pelo cotovelo que se prendia em V nas bordas. Tentei sair para os lados, me virando, mas mal consegui dobrar os joelhos.
Isso foi há algum tempo, antes de meu primeiro desmaio. Não sei quanto se passou. No escuro imóvel não dá para contar. Todas as nossas referências de vida deixam de existir, exceto você mesmo. Largura, comprimento, tempo, espaço, tudo, nada, certo, errado, cima, baixo, verdade, mentira, minutos, horas, sabedoria, ignorância, bondade, maldade. Só resta sua mente e o calor. O ar entra quente em seu corpo e por imposição, denso, preenchendo seus pulmões com odor de terra, pesado, quase sólido, sufocante.
Claro, pensa-se nisso tudo depois de gritar até a dor o emudecer, socar e se debater até os dedos se quebrarem, espernear até não sentir mais os pés, suar banhando o leito, e Chorar feito uma pequena criança, com lágrimas saindo em profusão, acompanhadas pelo ranho que escapa do nariz escorrendo pelo canto do lábio, contornando o pescoço até a nuca, provocando uma sensação que sempre me foi repugnante, exigindo uma limpeza imediata com as costas da mão. Este movimento reflexo natural e mundano é interrompido pela dor dos dedos quebrados tocando ferozmente a madeira. Eu sei que é madeira.
Súbita e inesperadamente lhe abraça uma calmaria maléfica, que se mostra, todavia, ser a precursora do pior dos momentos. Ideal era se quebrar todo ao ponto de cessar a tortura de saber-se ali. Nela, você se enxerga, se percebe, mira com precisão seu destino, raciocina, enfim. A calmaria faz pensar fisicamente no sofrimento, ter consciência dele, e logo se espanta e se desespera exatamente por efeito dessa dose nefasta de consciência, o que o faz quebrar mais um dedo pelo menos. E apago em resposta.
Acordo contra minha vontade com o suor inundando meu corpo, o que prova que estou desgraçadamente vivo. Cinicamente, meus órgãos continuam funcionando, com eficiência indiferente ao meu espírito: respiro, meu coração espalha meu sangue pelo corpo, pisco, salivo, produzo hormônios e inúteis espermatozoides, leucócitos avançam sobre vírus e bactérias — tão vivos quanto eu — protegendo minha saúde. Acho até que daqui a pouco terei que mijar. Simples assim, como se eu pudesse me levantar até o banheiro, colocar o pau pra fora e molhar a borda da privada como de costume. Penso nisso enquanto choro mais uma vez. Nesta versão, um choro contido, triste, desalentado, como que abandonado. Quando uma merda dá as caras em sua vida, ela vem perna abaixo.
Respiro fundo e tenho uma ideia. Começo a respirar bem rápido para consumir todo o ar que me resta e acabar logo com isso. Inspiro e expiro com tanta avidez que meu cérebro fica hiperventilado. Logo sou tomado por uma tontura causada pelo excesso de Oxigênio e reconheço o vão cansaço da tarefa. Rio grotescamente por estar pleno e meio dopado daquilo que logo me faltará e me extinguirá, e porque me lembro das bolas de aniversário que enchia vigorosamente quando garoto e que provocavam a mesma sensação. Neste momento revejo o rosto de minha Mãe e viro o meu de lado, fechando os olhos, para escondê-lo de vergonha. Cerrar os olhos no breu da morte. Ironia!
Vergonha pela vida que levei diante de tudo que ela esperava de mim. Mas ninguém se encontra como eu por nada. Não leva tiro quem está na missa. Fiz tudo errado. Nem da desculpa de que tentei acertar eu posso me orgulhar. Eu sempre soube que meu caminho era torto. Esperava acabar com uma bala na cabeça, nas costas, explodido dentro de meu carro, submerso de pés acorrentados, sei lá, como em muitos filmes acontece. Nunca imaginei que pouparia o árduo trabalho de meu coveiro. Como sou bom.
Cumpro a experiência do filósofo. Estou aqui, suspenso sob a terra, sem contato com quase todos os meus Sentidos, salvo o tato — a dor. Assim experimento minha Mente como algo separado de mim mesmo; quase posso voar, a não ser pela pequena restrição que me aflige. Eu me vejo. Não fora do corpo, mas ao largo de minha consciência cotidiana invariavelmente arraigada ao Normal. Uma liberdade tão ampla e vaga quanto insólita toma conta de mim, da sobra de mim. Não há nada material aqui embaixo, nenhuma barreira sensorial. Eu me vejo, assim, moralmente, e não gosto de quem sou, julgo. Já não morria de amores antes, agora, sem luz e sem fuga, não me orgulho intensa e imparcialmente daquilo que me tornei e como me tornei.
Observo minha vida diante da morte e Grito, ou imagino gritar. O que restou de minha voz, não me parece real, e sim de outro. Já não posso afirmar se ela realmente sai pela minha boca ou se apenas repercute em meu cérebro inebriado, uma ilusão imposta por uma mente em Desconstrução. As certezas mais próximas vão me deixando, espargindo a realidade em perdigotos insubstanciais. Calor e suor são as únicas verdades que me mantêm em contato com a concretude da vida. Sempre odiei a sensação do suor escorrendo a conta-gotas sobre a pele e estaria fadado a me afogar nele se não fosse me afogar, antes, em dióxido de carbono.
Esses pensamentos me dão a esperança de que tudo está prestes a terminar, torço com comoção pela chegada de alucinações que me distanciem desta dolorosa imobilidade negra.
Devo ter perdido os sentidos por mais algum tempo. Ou será que apenas pisquei os olhos numa fração de segundo? Nessa minha nova casa, onde desperto com insistência, o Tempo não reside. Sinto que estou vivo há milhares de anos e que ainda viverei outros milênios durante os próximos minutos. Tanto faz. Eu não me pertenço. Mas eu existo… ainda.
Será que eu já morri? Será que minha mente atingiu a escuridão tépida de algum útero inseminado e poderei viver uma vez mais?, uma nova vida? Dedos incrustados de sangue e lancinantes espasmos nas costas inertes me provam que ainda sou eu mesmo, o eu-agora. Sacudo o corpo em desespero por ser eu-ainda.
Mijei. Sinto o cheiro que me traz de volta. Sinal de vida, lamento. Agora parece que minha vida jamais existiu. Todos que conheci e tudo que fiz, as decisões que tomei, soam irreais, fantásticos, como sonhos distorcidos mal contados por outra pessoa de uma era esquecida. Desapareço da mesma forma que a árvore que cede ao tempo e Cai numa floresta obscura e sem testemunhas, sem alguém para ouvir o som da madeira se rompendo e das folhas farfalhando durante a queda, nem para apreciar o vazio deixado por aquilo que já não está mais lá. Como se jamais tivesse sido real.
… uma pequena dificuldade de respirar… leve… deve aumentar… tomara…
A dor diminui, não percebo mais se estou deitado... Flutuo. Uma pequena ânsia de vômito, mas a engulo logo, porque não mereço mais essa desonra. Minhas pernas já dormem faz muito tempo.
Estarei com sorte?
Terminarei, contudo, Livre.

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