segunda-feira, 26 de março de 2018

Em Si - Razão e Consciência


Já esteve preso em si, em sua casa, em seu quarto, não se desvencilhando de seu cárcere ainda que seja o próprio carcereiro, com todas as permissões ao alcance? Não sei se isso realmente é uma pergunta. Talvez seja um estado. Ou condição.
Tem-se as chaves do catre, passe livre nos corredores e nos arredores; tem-se condução, algum dinheiro do cheque especial, e até o mínimo de saúde para se levantar e simplesmente ir. Note que o destino é prescindível. As portas estão abertas, gritando para que passe, mas está-se surdo e não se consegue entendê-las. Intenso caos profundo, eu sei, mas não há movimento. Não há impulso.
Não se sente fome, não muita, assim o isolamento é mais fácil, o que torna tudo pior, porque favorece a permanência. Sem fome não há busca, apenas resignação insatisfeita e perene. Os dias se sucedem como um só, eivado de horas e minutos, vividos um por um e cada um, que não transmutam sua marcha contínua do Mesmo — o inalterável.
Não há algemas ou pau-de-arara. O que retém o Homem é a derrota da diversidade. E o silêncio. Tudo reverbera na mente, sem que haja a que ou quem, remeter a voz ou os ecos do pensamento indômito.
A razão não é dona de si, ela apenas surge avassaladora e selvagem, impiedosa com seus atos destrinchantes do eu, de mim, de tu, de vós. A razão é assim: sem razão, tão somente marcial e determinante, peremptória. Sua força é ser incontestável, pois já está lá, altiva, abrangente e precisa. Diria-se: cirúrgica.
A consciência aprende a refutá-la, mas é consciente demais para alcançar êxito. Coordena os argumentos da razão enfeitiçando-os de lógicas e propriedades, mas falta-lhe autenticidade. A consciência forja, a razão demonstra. Aquela afaga, esta morde.
O que não significa, entretanto, que seja clara, a razão. Ela age por linhas tortas. Tortas demais, porque a verdade não é linear. Ela tão somente é. Sempre conhecida, quase nunca aceita — conscientizada. As pessoas preferem a crença, o dado, o ruminado para mais fácil deglutição. Engolir não é agradável, é um esforço muscular intenso e agudo. Pode doer. Geralmente fere. E quem cospe, por padrão, o faz para os lados ou para trás, desviando-se do produto daquilo que não foi capaz de ingerir. Cuspa para a frente.
Quando a razão se faz notar, o mundo cai. Cai à sua volta com a magia da gravidade — salve Newton. Não há como segurar, o mundo é grande demais, pesado demais, e você não fez nada para merecê-lo. Deixe-o cair e ouça, com medo e susto, o fragor. Os detalhes desse mundo são tão ínfimos e indecifráveis que escapam entre os dedos, por mais que firmemos nossas mãos, pressionando os polegares aos mindinhos para não permitir que sejam trespassados. Ainda assim, esvaem-se, os pérfidos detalhes, pelas garras e nada compreendemos de fato, pois não retidos.
Sua consciência vai repelir, talvez inconscientemente, a queda e as farpas, o desnudar da vida, mas elas estarão lá — em vertigens —, delineadas pela razão que se lhe as apresenta como melhor aprouver — a quem? Você não dá ouvidos, muito ciente do mundo falsamente inteiriço e em pletora de sentidos desarranjados.
Para impedir o caos nefasto da razão, a consciência organiza tudo em feitios de ordem, com papéis a serem encenados com mediocridade, com causas e consequências que não permitem à razão florescer, embora ela sempre esteja presente, etérea, assombrosa, pronta para destronar as suas barreiras nos primeiros ruídos de fraqueza.
Quando isto acontece e a gente a encontra diante de nós, a um palmo mais ou menos, sem cheiro, vemos que ela se veste exatamente da nossa forma, uma silhueta da qual tentávamos escapar, inutilmente. Implacável, ela o deita no chão e sem amarras ou pressão, não lhe permite levantar, mas não o segura — é mais forte que qualquer poder físico. Mantém as portas abertas, com sarcasmo, para provar o seu fracasso com vigor.
O fracasso é ostentado a cada dia. Portas abertas, chaves nas mãos. Permanência.
Conhecer, repentinamente, tudo o que não se é e que tanto se dedicou, em cada ato diário, para não o ser, com algum êxito temporário, entremeado de lampejos esparsados no tempo de humanidade verdadeira, o reduz a um passageiro sem bilhete de sua própria sem vida, com medo de o cobrador aparecer em alguma esquina e expulsá-lo dela, seja qual for a cara que se dê, ou que se veja, a este senhor.
Mas a razão reposiciona tudo ao seu redor, renomeando cada uma das coisas, não necessariamente o fortalece. Isto depende do usa das informações às quais passa a ter acesso.
A razão introduz o ser humano ao homem, e não se gosta do novel desconhecido. Detesta-se. E não há divórcio, até que a morte os separe.
A saída continua à frente do homem, escancarada, mas não é um feixe de luz, uma iluminação santa. Está lá, como ela é. E pode-se ver tudo o que tem do outro lado, sem ornamentos ou efeitos especiais. Este caminho que se traça além dos umbrais é tortuoso. A porta de evasão é um limiar tênue e opostamente forte. Seria mais prazeroso e fácil escalar ameias de castelos a transpor um portal aberto para conviver com a razão — vê-se o outro lado de frente, enquanto a consciência resta esmaecida de forças para reorganizar e conectar os pontos em alívio. Vive-se a esmo.
A razão é a verdade sem dono, uma deusa pura, sem ódio ou amor, apenas ciência. Ela conduz o homem para onde se encontra, hoje, enquanto a consciência o atrasa. A razão ascende forte sobre o encarcerado entre suas paredes; a consciência remonta ligações, não permitindo que tudo se demonstre como realmente é. No homem em que aquela é sempre mais forte que o usual, em que se mitiga em inferior grau, exige-se, em contrapartida, o desejo de estar só de outras pessoas — mas sempre precisando de alguém? É esta uma pergunta?
Ela se manifesta, no homem sem consciência, como uma sombra longa na manhã, conectada a si apenas pelos pés, mas que se aproxima mais e mais, sem rota de fuga, com o avançar das horas, convertendo-se num amontoado disforme e breve, que não se nota senão olhando para baixo, para dentro de si. E o meio-dia é agora.
Não sem luta. A consciência tenta trazê-lo de volta à mentira anestésica dos sentidos entorpecidos, à paz interior pela idealização do exterior, furtando pedacinhos reais do homem para que viva livre da razão.
A vida é efêmera como pegadas à beira-mar —alguém já deve ter escrito isso e eu devo ter lido. Que seja efêmera como a memória. De outro modo, fica claro que ela se move para frente, e que tudo o que se passou somente existe sob os pés do andarilho tenaz. O futuro é o passo seguinte, com a certeza de que irá marcar a areia úmida, mas sem o vaticínio irrefutável de que o tornozelo não cederá. E a razão impede que a consciência afaste esta dúvida quanto aos fatos do porvir, o que gera temor de continuar caminhando, embora torne as curvas mais claras que uma longa reta jamais poderá ser.

Um comentário:

  1. Nossa! Como adorei esse texto filosófico. Pensamento intrínseco de uma pessoa à beira do masoquismo frenético da depressão. Parabéns! Nem nos melhores livros psiquiátricos se encontra uma retórica com tanta verdade e pertinência. Beijos na alma.

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