Antenor
estancou como um jegue na seca com excesso de carga em plena praça pública antes das seis da manhã, quando foi fuzilado pela imagem rascante de corpos
espalhados pela praça que se habituara a sempre cortar pelo caminho central duas vezes por dia rumo ao trabalho. Não
viu diretamente, primeiro porque pousava suavemente os olhos no chão, e segundo porque tais coisas etéreas que flanam na mitologia das ruas não são possíveis enxergar frontalmente, mas apenas
com aquele canto de olho, o pedante soslaio, o comum de esguelha, que por não
ser o foco principal da visão, não é obscurecido pelas barreiras levantadas
pelos costumes, pela ética e pela moral da sociedade, que salvaguarda o espírito do indivíduo dos males disponíveis. Um momento de mínima
atenção por esse fugaz ângulo do campo periférico da visão foi suficiente para fazer algo em Antenor despertar.
Parado
sob a brisa tépida matutina e a claridade nascente do sol, era ultrapassado e trombado
por pessoas que resmungavam pressa, incapazes de enxergar o terror a que
era submetido, cegos da mesma forma que ele próprio há poucos instantes. Aqueles
corpos estavam lá, caídos, arriados, com pernas e braços entrelaçados como um
Kama Sutra cadavérico, cabeças apoiadas em objetos indefiníveis, bocas abertas,
olhos semicerrados, encolhidos ou esticados; e todos continuavam suas
caminhadas sem se conter, sem perceber.
Antenor perscrutava em volta querendo gritar para que todos parassem em socorro, pois havia pessoas
abandonadas pelo chão, em beliche sobre e sob bancos da praça, estirados na
grama orvalhada, inertes, vivos ou mortos debaixo da única árvore, sujas, feridas e doentes. Conteve-se e deu mais
um passo, inseguro, em direção ao trabalho; repetiu um segundo passo, numa cadência
claudicante mal ajambrada, numa linha reta imprecisa, teso e tenso,
perguntando-se desde quando aquela gente estava ali tão perto, quando
chegaram, e quem havia permitido que ficassem. Não se moviam e temia atentar se
respiravam, pois a negativa urgiria uma ação que não queria tomar.
Caminhou
lentamente pendulando entre os rudes protestos daqueles que vinham atrás abraçados
em suas pastas e bolsas, bafejando seu rosto com mau humor e resmungos ininteligíveis
entre dentes, que o empurravam até o outro lado, atravessando a praça carregando
seu espanto despercebido. Era-lhe impossível deixar de notar à sua volta os
corpos que orlavam a certa distância a estreita trilha que forçadamente cruzava levado pela
vaga da multidão.
Sentia
um vazio sem dor em sua mente que o abobalhava a respeito do que deveria fazer, não
sabendo corresponder o certo e o errado, estabelecer o significado de tantas
pessoas largadas e ignoradas pelo chão, à sombra dos demais, representando um
mera penumbra do ser humano, amortecidas pelo álcool e outros anódinos de desalento.
Quando
o caminho se alargou ao atingir a calçada do ponto oposto que viera, parou
novamente, girou o corpo sem se aborrecer com a ombrada de uma loura alta que tocava
pesadamente o cimento com seus saltos vermelhos descombinados com o resto,
mas que estabelecia profunda simpatia com aquele humor degenerado pela
obrigatoriedade do trabalho e do dever imposto.
Chegou
um pouco para o lado evitando a torrente humana, aprumou-se, focou a vista,
tornou a cabeça indo e vindo cento e oitenta graus para analisar na praça, com
as mãos na cintura como quem exerce autoridade sobre uma criança, aqueles que
dormiam diante dos céus, mas o único sentimento que o acometeu foi o alívio em seus ombros por deixar aquela senzala pública. Uma vez fora, já não pertencia mais àquele sofrimento sonâmbulo, e seu aspecto
medonho o havia abandonado, tendo sido deixado para trás naquela trilha de percalços.
Entendeu-se
com sua consciência que a vida era assim mesmo, forçou-se em nome da moral apropriada a
permanecer mais alguns segundos diante daquela cena inóspita provando para si mesmo que se importava e, com maior valor, que não havia nada que pudesse ser
feito por ele. Culpou com toda a veemência que um pensamento solitário e
isolado pode conter o poder de governo que desdenha da condição de seus cidadãos; recuou um passo em ré; verificou o relógio no punho direito; suspirou grato pela
necessidade que o obrigava a seguir; os braços penderam ao lado da cintura fazendo cair um pouco os ombros gerando uma breve imagem abatida; mais uma vez girou o
corpo sobre o calcanhar atrasado; e seguiu seu caminho.
E
esqueceu. Trabalhou; almoçou; trabalhou.
Na volta, à tardinha, dobrou uma esquina antes da praça, obedecendo a um instinto que não era capaz de identificar.
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