sábado, 8 de março de 2014

Clausura II - O Trabalho

Era dinheiro na veia. Estava ligado à máquina. Não podia me desvencilhar. Uma monetariodiálise permanente.
Sentado horas a fio, dia após dia, entre uma cadeira e uma mesa, com aquela tela brilhante assomando sobre mim, ostentando seu irônico nome de “computador pessoal”, engolindo numa bocada única Vontade e Tempo.
Incapaz de me mover pouco mais que alguns centímetros em toda a Rosa dos Ventos, sentia meus braços encurtados sobre aquela planície de letras que insere informações na luz que me hipnotiza, sob as ordens indicadoras de meus hábeis dedos. Mesmo essa pequena liberdade me é tomada, pois nem os lépidos movimentos que pratico sobre os hieróglifos modernos, romanos e arábicos, são empreendidos livremente. Há uma ordem estabelecida e um objetivo a ser alcançado, e qualquer movimento em falso, estranho às condições pré-estabelecidas, pode e será considerado uma afronta às determinações superiores. Cada ponto que encerro é verificado e gravado. Não tenho a possibilidade de me esquivar. É um direito me olhar, me avaliar e decidir sobre mim o que é melhor ser decidido: meu próximo passo.
É um temor a possibilidade de um engano humano, como se teme a óbvia certeza do toque num fio desencapado. Leves choques em pequenas admoestações que perseguem toda uma vida e se acumulam sem cuidado ou organização, e que, de repente, extravasa de seu quarto escuro e nos apresenta à verdade de nossa clausura.
Minhas pernas estão desaparecidas sob a mesa que suporta todo o peso material do trabalho e sequer me recordo da cor de minhas calças. Fremem invariavelmente durante toda a duração de meu cárcere diário, supostamente desejado. Alguns denominaram esse agito como “mania”, outros como “nervosismo” ou “ansiedade”, e houve aqueles que apelidaram de “dedicação”.
Supostamente desejado. Um vínculo perene com o salário e a necessidade de subsistência da única maneira conhecida, mantêm meu corpo invisivelmente atado nesse cubículo sem luta, cercado no imenso esquife de pessoas vivas e sem mentes.
Tudo está condicionado à doação integral de uma alma à produção social, à contribuição individual para o crescimento do povo, da economia, da nação. O sacrifício de uma vida pelo método mais cruel: a mal vivência, os fazeres incompletos, os quereres reprimidos, os pequenos gozos mendigados.
Ainda não consigo me mexer. Continuo produzindo, respondendo tecnicamente às questões, rodeado por pessoas que jamais se interessaram em passar um minuto comigo, que nunca desejaram saber quem sou eu ou o que eu penso que sou. É o compartilhamento circunstancial e forçado das vidas vendidas por uma quantia que não compra a alforria, pois o alforriado não permanece nem foge, passa a viver.
São relações delineadas por patentes que tornam um homem melhor que outro, distribuídas por critérios objetivos eivados de subjetividade. Mesmo com o comunismo da imobilidade forçada, do espaço reduzido, do caminho limitado, aqui sou inferior, delicadamente não chamado de subordinado ou subalterno.
Rio sem sabor das pessoas que dizem que temos escolha, mas esta sempre se reduz a uma outra sujeição, outra mesa, outro caixão. Alternar de correntes ou de cela não nos torna prisioneiros diferentes. Morrer de fome e de desamparo físico não é uma escolha, é despedir-se de si. Penso na escrita, mas trabalhar com o que se ama é temperá-lo em excesso com a porção mensal de sal, pois o torna imposto, matando a essência de qualquer espécie de amor. Neste caso, morre-se duas vezes simultaneamente.
Diante das opções vedadas, está ficando difícil respirar. Sinto menos as dores e a claustrofobia adormece em companhia de minha vontade. O mundo se distancia de minha percepção como se somente aquela luz fizesse sentido, cedendo ao feitiço do fogo sobre a mariposa. Nos arredores, há elogios mentais à minha concentração no trabalho, nos objetivos da empresa, nos resultados que não me importam e que não tornam para mim. Sou exemplar. Procuro erguer a cabeça e desmenti-los, mas não tenho nenhum direito de me levantar, e minhas escolhas estão oferecidas a algum deus que não me socorre. Remo nas galeras sob o ritmo das moedas tilintando que não posso renunciar, açoitado por falsos elogios que sou obrigado a ouvir.
Há outros de mim, afirmo numa certeza verde de esperança. No entanto, o que vejo de soslaio é um cemitério de cadáveres sentados, levemente inclinados em direção à luz, cotovelos juntos ao corpo, como numa posição verticalmente fetal. Todos sistematicamente colocados lado a lado, enfileirados, em covas altas, sete palmos acima da terra, enterrados em suas necessidades com uma lápide plástica pendurada no pescoço, nominada e numerada, sem a qual não se sabe quem se é.
Todo trabalho é escravo.

Um comentário:

  1. Adorei e concordo: "Todo trabalho é escravo." Contudo, se pararmos para pensar, temos o livre arbítrio que podemos usar para cessar esse território escravagista. Cabe a pergunta:- você começaria tudo outra vez? Beijo.

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