sábado, 26 de abril de 2014

Um Quarto de Hospital

            Dionísio caminhava pela Rua das Marrecas, no Centro do Rio, após lauta refeição sem balança com direito a dois pedaços de carne. Gabava-se de sua esperteza aos dois amigos “otários” por ter realizado a proeza de esconder um terceiro pedaço do animal abatido por baixo do arroz e do feijão, locupletando seu estômago com a proteína contrabandeada. Caminhava como um pêndulo glutão, balançando num ritmo sonolento de leste a oeste enquanto voltava para o trabalho, estabelecido há mais de oito anos na Rua Evaristo da Veiga, sem nunca ter se dado conta de que este se tratava de uma pessoa há muito morta, esquecida por todos e por qualquer um, inclusive Dionísio, que jamais se alertara que aquele nome já fora envolvido por carne e osso e que contava uma história, com uma importância suficientemente reverenciada para nomear aquele pequeno trecho de via pública.
            Na rua honrada ao finado político está localizado o quartel-general da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que de imponente possui tão somente o título, pois decai com o tempo na mesma medida que a pele alva de uma idosa descuidada nessa terra ensolarada. Pois bem, repentinamente, todos os pensamentos, próprios e alheios, cessam em uníssono com os estampidos que são ouvidos de dentro do forte enrugado, levando os três amigos a erguerem as mãos às têmporas, dando aquela semiagachada inútil para salvar a própria vida e que apenas registra o susto e o medo. Em alta velocidade, arranca uma viatura policial atirando para dentro do recinto militar, seguida de destemidos e irresponsáveis fardados que contra-atiravam os insultos de fogo.
            Dionísio assistia com uma expressão de maravilhado e assustado, ou seja, completamente abestalhado e embasbacado, não necessariamente nesta ordem, diante da situação inusitada, enquanto os companheiros se espremiam no muro, permanecendo aglutinados atrás do bem alimentado companheiro. Sentiu um impacto no peito como um murro de pugilista, embora nunca tenha entrado num ringue de boxe, e uma intensa queimação por dentro, num segundo imaginando que estava cedo ainda para a velha azia de cada dia. Notou que o céu azul do janeiro fervilhante parecia cair em sua direção. Estava de costas na calçada imunda, de olhos fortemente cerrados pelo pavor da queda do firmamento, quando ouviu seu nome gritado por Dantas, um dos otários das duas carnes. Não entendeu o alarme até reconhecer novamente o ardor inicial e a mancha rubra tomando conta da camisa de linho branca nova. Ardózia iria matá-lo, foi o que pôde pensar antes de tudo escurecer.
            Acordou no hospital, sem que houvesse vislumbrado túneis de luzes para encaminhá-lo ao divino, nem sombras vorazes para arrastá-lo ao sofrimento eterno. Menos ainda teve a oportunidade de ver-se de cima ou de tentar retornar ao corpo abandonado. Simplesmente escureceu e clareou, de maneira idêntica ao fenômeno que ocorria em frente à televisão nas quartas-feiras à noite durante os primeiros quinze minutos da transmissão do futebol: de repente tudo se tornava uma manhã de quinta, como aquela, aliás.
            Estava enfaixado do tórax até o ombro, no dia seguinte, a tão esperada sexta, com um estreito tubinho penetrando sua pele nem morena nem branca, estirado num leito cor de azul-sem-graça com branco-insosso, que combinava perfeitamente com a roupagem e os rostos carentes de vida das enfermeiras. Soube o que acontecera pela voz monocórdia e lúgubre de Maria da Anunciação, que cumpria seu turno com a mesma emoção de um ponteiro de relógio atrasado. O tiro que o atingiu havia sido desviado do coração pela aliança de ouro que carregava protegida no bolso da camisa alva impecável. Agradeceu a Deus, embora não tenha vindo ter com ele durante seu desfalecimento, e lembrou-se de Ardózia, dos trinta e um anos juntos, dos dois filhos já crescidos e dos falecidos pais, que também não deram as caras quando apagou.
            Ardózia entrou de mansinho, como era seu jeito, mas mal conseguiu se aproximar da cama, quando dois repórteres invadiram o recinto com microfone e gravador em riste, perguntando simultaneamente questões distintas, que cegaram o entendimento de Dionísio com muito mais eficiência que os flashes de paparazzis sobre as estrelas de cinema. O paciente sem paciência pediu calma aos dois, totalmente surpreso e meio contente, no exato momento que uma câmera de TV e um fotógrafo arrastaram a porta, ecoando o estalo dela quando se chocou contra a parede por todo o quarto, forçando a mola que a mantinha fechada.
            Finalmente a disputa entre os profissionais havia se encerrado, podendo a entrevista com a “vítima do despreparo da polícia”, título que o acompanharia durante os próximos cinco dias de fama, até outra vítima tomar seu lugar. Antes de ser sucedido em seu trono, Dionísio contou, com voz impostada, que foi capaz de perceber todo o ocorrido: os sons de disparos iniciais, que reconheceu como calibre .38; o desvio pela contramão da viatura; a posição periclitante de seus apavorados colegas com a saída dos fardados do quartel aos tiros. Disse que não pensou duas vezes em se colocar à frente dos homens que o acompanhava, querendo transmitir tranquilidade aos mesmos, mas que nunca esperaria aquele petardo em sua direção. Um herói! Um herói épico!
            Diversas perguntas eram feitas e respondidas com riqueza de detalhes, mas não foi capaz de reconhecer os ousados ladrões de armas, como veio a saber o motivo da ação. Ardózia havia se sentado placidamente no sofazinho gelado do quarto, olhando emotivamente para o Dionísio e para os repórteres, enquanto cada um falava. A conversa parou um instante, quando uma chamada na televisão 14 polegadas do quarto apresentou a fachada do hospital, e o ferido pediu para que o deixassem ouvir. Aumentou o som com o controle remoto que exigira uma caução de cinquenta pratas, provavelmente providenciada por um de seus filhos. A história do quarto foi repetida na tela, informando que não há pistas dos ladrões, acrescentando que o Sr. Dionísio Silva de Lima encontrava-se em recuperação. Foi colocada num ar uma diagramação do ocorrido mal elaborada por computador, apresentando um retângulo saindo às pressas do quartel, outros bonequinhos saindo logo após, e, finalmente, linhas tracejadas atravessando a rua em direção a um bonequinho palito amarelo na outra calçada. Era Dionísio. Retornando ao repórter de campo, uma foto dele com a camisa do Vasco foi colocada no canto superior direito da tela, com seu nome sob ela. Orgulhoso, Dionísio ampliou mais o sorriso no momento em que se comentou que ele havia salvado a vida de dois amigos de longa data com a sua corajosa atitude de se manter à frente deles.
            Mas a ênfase do repórter ganhou ritmo de grande acontecimento ao relembrar o povo curioso que a morte de Seu Dionísio foi adiada pelo desvio no anel matrimonial, inutilizado no bolso de linho. À menção do símbolo de seu casamento, olhou ternamente para a esposa, que retribuiu com seu contumaz sorriso curto e macio, que transmitia a tranquilidade necessária que mantinha Dionísio em paz nos momentos das maiores dificuldades da família. Chamou-a ao leito e agarrou as pequenas mãos femininas com as seus ilesos dedos de unhas bem-feitas. Aos olhos dos repórteres, derramou lágrimas que brilhavam sob os reflexos da luz branca que abundava o ambiente a cada foto, declarava seu amor vigiado pelo microfone e pelo gravador que captavam a intimidade desleixada. Ardózia sorria tenra, cativante, mas sem emitir uma palavra. Desferiu um beijo suave e lento na bochecha do marido, a foto de capa, ou da página onze, dependeria do editor da página policial.
            No instante em que a serena Ardózia afastava seu rosto do do marido para alcançar a outra bochecha, adentraram dois homens: o primeiro de farda de gala, embora Dionísio não fosse capaz de notar a diferença da comum e a representatividade das vestes para ocasiões oficiais – apenas a achou bonita; o segundo de terno límpido, que parecia ser escovado a cada 15 minutos, gravata rosa e camisa branca, que lembrava a sua própria camisa, destruída na guerra da qual era sobrevivente. Assim que se sentia: um soldado ferido em nome da nação. Solenemente, o senhor fardado elaborou firme continência ao civil baleado, enunciando em seguida discurso de perdão em nome da Polícia Militar, devotando a coragem e a bravura demonstradas pelo transeunte desafortunado, informando que seria condecorado honorariamente pela demonstração de sacrifício tão louvável e raro nos dias de hoje, e que gostaria que houvesse mais homens como eles representando as honradas divisas da corporação. Firmou os pés, fez nova continência, afastando-se dois passos para o engravatado falar.
            Anunciou-se com pompa solitária o Subsecretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, repetiu o contexto do discurso de seu antecessor, acrescentando palavras de convalescença e elogios, por vezes direcionando o olhar para Ardózia, que observava tudo um pouco enfastiada e muito desconfiada da representação daquela dupla de bonecos. Por fim, declarou a obrigação honrosa do Estado em arcar com todas as despesas médicas e hospitalares, bem como de toda medicação e tratamento posterior que se fizesse necessário depois da alta à plena recuperação do cidadão. Tudo devidamente registrado pelos profissionais da imprensa presentes.
            Dionísio não cabia em si de tanto orgulho, quase sendo capaz de abrir os pontos de sua operação com uma estufada de peito.
            Finalmente todos os deixaram com palavras ralas e céleres de adeus, entoadas com notas de alívio pelo fim daquela obrigação. Pôde, enfim, ficar a sós com sua esposa. Perguntou sobre as crianças. Ardózia ciciou que Ângelo e Fernando passaram ali toda a tarde, noite e madrugada anteriores, saindo para trabalhar assim que foi confirmada a notícia de que seu pai estava bem, fora de risco com o sucesso da cirurgia.
Mais uma vez foram interrompidos pela repercussão do caso, pois as duas autoridades que estiveram presentes em seu quarto de hospital, agora davam entrevistas muito mais animadas ao vivo para o telejornal, este sim o evento para o qual haviam tão especialmente se vestido. Ouviram ambos num silêncio solidário as mesmas palavras que foram lançadas logo antes contra as paredes cor verde-cansado, emendadas pela promessa de Justiça à população, pois a captura dos criminosos significaria uma resposta à bandidagem e uma demonstração de força ao povo carioca, recuperando o respeito das instituições públicas há muito desacreditadas.
Ao final da reportagem, Ardózia apertou a mão do marido e reclinou seu corpo na direção do acamado. Dionísio apreciou o movimento da esposa a se aproximar, os cabelos tocando o pescoço e o queixo num contato rarefeito e delicioso, sentindo a voz quente e naturalmente aveludada – que o fazia recordar certo dia de maio de 1982 – bafejar em seu ouvido já arrepiado, quase sentindo tesão:
“O que sua aliança fazia no bolso?”

O arrepio intensificou-se, mas a leve ereção murchou. Fechou os olhos pensando em Deus, procurando desesperadamente pelo caminho de luz e de salvação, ou mesmo, quem sabe, pelas sombras vorazes do Outro. Porém, ambos faltaram-lhe uma vez mais.