quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A Insignificância da Presunção de Caráter

   Jano percorria sua vida sempre se perguntando sobre suas posições e expectativas. Era uma espécie de pensamento que o assaltava de quando em vez, sem aviso, como é comum em qualquer forma de ideia. Elas vêm e não dão o menor sinal, nem mesmo uma nebulosa dica de que estão para surgir. E você se vê obrigado a enfrentá-las, muitas das vezes com certo constrangimento e perplexidade próprios por tê-las em sua mente.
Imaginava-se em situações de risco alheio e como agiria dentro de certas circunstâncias, como colegas ou desconhecidos em perigo ou que se encontram em certos momentos em que a vida se apresenta tão rígida que se duvida de deus.
Nessas situações sempre tinha a presença de espírito e a prontidão necessárias para encontrar a solução mais prática e adequada para o drama vivido pelo “paciente”. Em algum momento de suas fantasias verdadeiras, atribuiu aos anônimos sofredores essa profissão. Sempre havia um paciente-idoso caído numa calçada, ou um paciente-menino perdido num shopping, ou um paciente-vítima desorientado ou ferido, ou um paciente-amigo necessitado de qualquer caridade ou etc. Sentia-se um médico do devaneio que invariavelmente tinha à mão as maneiras e as ferramentas corretas para curar os males inventados, tão brilhante era que seu diagnóstico já estava preparado e escorreito ao mesmo tempo da ação desgraçada causadora do mal do paciente-tipo. Não havia necessidade de examinar a questão. Ela já se apresentava flagrantemente derrotada diante de sua sagacidade médica.
E havia o público. Tão imaginário quanto os contos de fadas conhecidos e esquecidos. Até a aplausos já teve o privilégio de agradecer, após mais uma atitude heroica que deixou seu paciente-mirim nos braços de uma mãe tão desesperada quanto mais relapsa se apresentava aos próprios olhos, mas, principalmente aos alheios. Vezes houve em que endireitou o caráter de uma pessoa que, em silêncio, acatava a lição. Os repreendidos nunca contestavam na perfeita edição cinematográfica da mente de Jano. Sua razão sempre era superior às demais e pelos demais apreciada sem correções ou adendos. Estes, quando necessários e ocorridos após formulada a tese principal, eram imediatamente inseridos pela cabeça lépida e congruente do doutor. E como o público agradecia e tecia comentários ciciados aos laterais, mas captados pelos ouvidos carentes e fabulosos do médico circunstancial, sua vontade era finalmente satisfeita, ao menos até o segundo seguinte, quando a realidade o oprimia.
Existe um pequeno palco na existência, onde os caráteres superiores se apresentam; e a plebe de índole menos virtuosa reverencia com veemência, mas sem convicção de motivos, sem identidade com aqueles a que ovaciona. É uma peça fria, de sucesso indolente.
Não era algo que atormentava Jano. Apenas surgia em alguns momentos, muito estimulado pelos acontecimentos de fatos com que mantinha pronto contato pela vicissitude impiedosa da vida. Assistia à obrigatória notícia de uma tragédia sem envolvimento, expondo não mais que uma consternação formalmente exigida pela sociedade. Não se deve, no mundo de hoje, ser indiferente ao sofrimento alheio, insensível às perdas estranhas e estrangeiras. Portanto, algum nível de abalo emocional deve ser demonstrado aos outros seres humanos, sob pena de ser apenado por austera desumanidade.
Tais fatos inescapáveis do cotidiano hodierno, em algum momento posterior, faziam nascer em seu inconsciente as narrativas mais incríveis. Incríveis não pela fatalidade criada, pois toda desgraça é possível, mas pela conduta irrepreensível, vitoriosa e romanesca de Jano. O real, o palpável, o sólido, o verdadeiro, o mundo, apresentam a Jano sempre um resultado muito diferente do imaginado.
Ao testemunhar um acidente de trânsito, sempre se manteve como mero espectador. Ou pior que isso, indiferente. Ao ver uma criança transitando aparentemente sozinha, nunca teve o ímpeto – ou a coragem – de abordá-la quanto aos seus pais ou responsáveis. Passava ao largo da pequena criatura sem perquirir sobre sua condição, para em seguida forçar seu esquecimento do fato ou desculpar a omissão com razões bem arranjadas que comprovem inelutavelmente que o menino ou menina jamais se encontrou em risco, obtendo, com isso, contrafeita paz interior. Um idoso que caísse na calçada era cercado de curiosos, vários Janos observando um espírito mais elevado amparar o velho estirado. Na hipótese, um herói; na ação, um membro da plateia que aplaude o astro que sonha ser.
Essa perspectiva de saber aquilo que é certo – mais que o certo, aquilo que é estimado como ápice de comportamento individual exemplar pela sociedade – e a certeza de que não possuía o desenvolvimento de vontade necessário para cumprir com a exigência implícita, maltratavam sua alma. Era ferida por um conhecimento intangível que não se sentia capaz de concretizar. Sentia-se insignificante como Homem, como Ser Humano.
Mas seu exterior, seu fenótipo social, era comum de todos. Nada podiam repreender em suas atitudes perante os demais, pois de ninguém é exigido ser acima da linha da normalidade. Ao contrário, há aqueles que se incomodam com a superioridade, principalmente a de caráter. Mas tão somente quando expressada diante deles. O caráter ideal é louvado, o caráter demonstrado ofende, pois reduz os demais e confina o público à sua contumaz escassez de ação moral.
Mas para Jano era mais doído, ao menos parecia ser, pois nunca tivera contato com alguém que pronunciasse algum lamento por não ter sido aquele que se moveu primeiro, que se adiantou aos outros. Jano tinha consciência de sua imobilidade quando mais era imprescindível que vencesse a inércia, o lugar comum e a aprazível cadeira de praia da indignação morta, aquela que pomposa e orgulhosamente apresentamos aos conhecidos próximos ou a quem se dispuser a ouvir, mas não praticamos. Indignamo-nos e só.
Anos e anos sendo martelado pela incoerência entre mente e corpo, desejo e inação, ilustração intelectual e tabula rasa social, tornaram Jano vencido por si mesmo. Uma derrota na qual não se encontra vencedor; não há comemorações; somente desequilíbrio pela ausência de oposição.
Jano percebeu a insignificância de seus pensamentos altivos, nobres e de seu saber antecipado. Como seria melhor se ímpetos e instintos conduzissem seu corpo e o direcionassem àquelas realizações tão detalhadamente planejadas? No entanto, o planejamento é o carrasco do instinto. Pouco resta de um quanto mais predomina o outro. Pensar é doloroso e parece menos natural que qualquer impulso alheio à razão.
Jano lamentava sua homilia intestina. Jano percebia que seu caráter era comum, em pé de igualdade com a maioria, medíocre, enfim. Talvez existissem cães com mais compadecimento ativo pelos Homens que ele. E Jano tinha plena certeza de que o “talvez” era uma caridade literária. Sentia que seu caráter, seu bom caráter, seu desejável caráter, seu invencível caráter, era somente ideal, no sentido mais amplo e ralo que a palavra possa alcançar. Era, portanto, diluído no percurso entre o pensamento e o estímulo muscular.
Sabia-se inteligente. Jano lamentava muito mais em sua vida. As lamentações de Jano vão, pouco a pouco, revelando-se a ele, apresentando-se sem piedade aos seus sentidos sensíveis, alertando-o para toda a verdade dessa humana aliteração.

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