quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Bolas e Livros

Lancinante, aguda, fina, perene, contida, própria, pública, ululante, consternante e tragicômica.

Nos idos de meu primeiro grau, início dos anos noventa, eu era um garoto que se enxergava Homem e conhecedor das verdades absolutas, desdenhando da complexidade da vida e resolvendo as questões filosóficas da humanidade com breves, rasos e levianos argumentos, ostentando orgulhosamente toda a certeza que a ignorância inconsciente traz consigo bem junto ao corpo, ou seja, eu era absolutamente normal.

Meu único ponto de destaque dos outros meninos, todos cheios de si por padrão, era estar numa posição privilegiada na turma: eu era o goleiro do time. Privilegiada porque você é o primeiro ou um dos primeiros a ser escolhido; porque os amigos o respeitam pela singularidade e dependência da posição; porque muitas das meninas adolescentes se interessam pelo que está fora da ordem, pelo diferente, pelo extravagante, pelo não usual. Era minha alta patente.

Foi numa aula de educação física excepcional na quadra coberta, pois parecia chover torrencialmente no mundo inteiro, que jogávamos futebol de salão e eu me destacava debaixo de minha baliza, quando Sérgio, um repetente contumaz, dois anos mais velho que a maioria — quando nessa idade faz toda a diferença — veio quase escondido pelo canto esquerdo. Sem jeito, pois não entendia nada de bola, mas robusto, o que me fez ser despretensioso e mesmo desdenhoso com o lance e já imaginando os olhos das meninas na arquibancada atrás de mim, Sérgio bateu de canhota com aquele eterno desequilíbrio de quem não é moldado para os esportes — uma bola que pesava cerca de meio quilo e era pequena, compacta, nem quicava se largada da altura do ombro — e me arruinou.

Tudo ficou escuro, um breu. É um segundo no qual nenhum de seus sentidos funcionam, você não enxerga, não ouve, não sente cheiro nem gosto, não fala. De verdade, você nem sente que não está sentido. Uma escuridão total nos isola do mundo. É o plácido momento em que se pensa que morreu. O que infelizmente não é verdade, pois surge o instante seguinte.

De um estado similar ao coma, ao nada, sente-se a existência de cada sinapse nervosa e a condução elétrica de cada impulso, transmitindo sua descarga reiteradamente para seu processador central de forma aguda e cruel; agora, você é um hipersensitivo, ouve o silêncio daqueles que estão por perto e absorve a consternação daquelas que nem sabem o que esse momento significa de fato, percebe a aproximação de vultos, a formação da roda de cabeças sem corpos sobre o seu corpo caído e turvadas pelas lágrimas, que, em nome da honra, jamais poderão rolar. Olha-se a todos e não reconhece ninguém. Fecha-se os olhos.

É fina, embora intensa, rasga a pessoa como um parto para dentro, que estica-se toda no chão numa tentativa cômica de estirar a dor, de anestesiar pela contorção. Estoicismo e cinismo puros são impossíveis nessas horas, pois ninguém passa indiferente por esse alheio sofrimento, nem está tão desvinculado do esquema social que não se sinta aflito, abatido e condoído pelo cidadão que nem geme.

Os momentos se sucedem, alguém pega suas pernas e as comprime contra o corpo, empurrando-as pelas canelas. A extensão não resolve, a compressão piora. A crueldade da relação adolescente faz-se perceber quando os amigos compreendem que ninguém ali vai morrer, e os sorrisos surgem nos cantos dos lábios, tomam as bocas inteiras, que vão se abrindo para emitir risadas que aumentam gradativamente o tom até atingir o nível das gargalhadas. E você lá, impotente, indefeso, cachorro morto para o pontapé do escárnio público, que o chuta afinal.

Cigana, a dor excede o impacto, desloca-se para cima, atinge aquele ponto sobre o qual sua barriga irá cair quando tiver os inatingíveis quarenta anos e for um velho. Pensa que vai vomitar, e continua segurando as lágrimas dentro dos olhos, obedecendo o código moral dos jovens cavaleiros. De forma surpreendente, a essa altura, você sente que ainda respira, e o mundo distorcido vai ganhando forma. Vê, inclusive, que o cara que pressiona suas canelas é o sorridente professor, que as risadas estridentes são das meninas atrás, ou na frente, ou ao lado; não se sabe mais em que orientação está. O sentimento é de que aquilo tudo vai durar para sempre, ou o sempre irá estagnar-se naquele momento, e o Tempo não continuará a fluir em sua perene efemeridade. Quanto se passou?, dez segundos?, meia hora?

A cada momento parece que recebe uma nova bolada, que, inclusive, ficou encaixada entre suas pernas e caiu junto com sua consciência, estatelada no chão, entre a trave e a linha de fundo. Seus descendentes devidamente guardados na bolsa, estão ruborizados, mas não mais que você, o patriarca. À medida que o mundo vai retomando suas cores, a vergonha vai dividindo espaço com as cólicas menstruais que o acometem raivosamente, as facadas seriais na linha da cintura que teimam em subir procurando o pescoço.

Em algum momento a gente fica de pé, ou nos levantam, caminha encurvado com passos enfermos, como se estivesse todo cagado, até o banco de reservas, senta um pouco de lado e consegue sorrir débil para o comentário que não entendeu de seu melhor amigo, tentando demonstrar que não foi tão grave e que não é para tanto alarde e gozação aquele evento funesto, lúgubre, nefando. Um sorriso preso, contido, nada mais. Um esgar.

Respira, respira, respira. O professor encerra a aula ali mesmo ressaltando sua desmoralização. Você pega a mochila cabisbaixo, coloca nas costas e vai para o ponto de ônibus, lentamente.

Uma bolada no saco por um colega incapaz nos torna mais prudentes e mais cientes da fragilidade e do acaso, irmãos que se encontram de quando em vez para zombar da portentosa humanidade.


No recreio seco do dia seguinte, todos correm até a quadra para garantir o primeiro jogo, eu não. Nunca corri porque tinha a certeza de ser escolhido. Não corri de novo. Chegava perto da quadra quando gritaram meu nome. Acenei com o objeto em minha mão evidenciando que era dele a prioridade e estampando com surpresa os rostos diários. Peguei meu livro novo, sentei num banco de concreto longe das quadras e abri na primeira página.

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